quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Vida de Doutor: Clichês


Iniciei essa série de posts com um clichê: “doutor é um tipo de médico”.

Até meus pais pensavam assim e quando expliquei que sou zoólogo, não entenderam. Em conversas com eles parecia que eu figurava como algum tipo de veterinário que dava aulas na universidade. Isso só terminou quando eu me defini apenas por professor!

Eu sou doutor, eu sou professor!

Ainda há duas coisas se compreende em relação aos doutores. Primeiro, aqueles que não posseum o título, mas sempre sonharam cursar doutorado e, segundo, quem possui doutorado, mas falha nas funções verdadeiras (por exemplo, publicar) e se traveste de todos os clichês da sociedade e da cultura universitária.

No primeiro caso, não tem jeito, algumas profissões são vistas pelas pessoas comuns como “doutores”. As “pessoas comuns”, ou cidadãos médios são a grande maioria, daí que é infrutífero lutar contra isso. O mais simples seria educar todos, um sonho que temos para este país. Enquanto a falta de informação estiver entre os cidadãos, doutor é médico e advogado... Ou um dono de um supermercado. O cumprimento “doutor” é similar a uma identidade de autoridade, um “coronel”, um “senhor de engenho”.

As duas frases abaixo são equivalentes:

-“O doutor pode deixar que eu cuido de seu carro!”

-“O coronel é quem manda, volte sempre!”

Eis o tipo de doutor que eu não sou e tenho orgulho de não ser!

No segundo caso, há doutores na universidade que se exibem demais. Aqueles que exigem que alunos, funcionários e outros professores chamem-no de “doutor”, até para dizer “bom dia”. Estão sempre travestidos de todos os clichês, acham que o doutorado os transformou em humanos superiores, mais inteligentes e sublimes [argh!].

Esse é o segundo tipo de doutor estereotipado que eu não sou. O pior, isso existe!

Nem uma coisa, nem outra. Profissionais com graduação e mestrado não são doutores, menos ainda o dono do mercadinho! Já o doutor improdutivo que vive falando do seu título sem na prática exercê-lo, pode-se classificar como frustração e só.

Além desses dois clichês há outros tipos que fazem, no conjunto, o que uma vez me falaram ser a “cultura universitária”. Vamos ver quatro deles:

(1) Clichê dos livros

“Você compra quantos livros por ano?” “Quantos livros você lê por mês?” Essas são perguntas que se você fizer a um doutor ele poderá mentir para você respondendo em números, nunca com um: “eu não comprei, ou li nada neste ano”! Isso pode acontecer e as pessoas devem procurar consumir conhecimento da melhor forma possível. Seja em artigos publicados em revistas científicas, livros técnicos, ou estudando a cultura popular. Não é uma obrigação ter bibliotecas em casa. Por exemplo, eu tenho meus livros, comprei cada um por interesses específicos (literatura, filosofia e ciência), mas não no intuito de montar uma biblioteca para tirar foto e colocar em meu Currículo Lattes. Usar imagens assim é clichê! Doutor com o fundo cheio de livros... Isso é a iconografia para o mundo que precisa dessa figura. Ah! A imagem é tudo e muitas vezes funciona, embora seja clichê!

(2) Clichê da boa música

Há de tudo na universidade, pode-se quase tudo e quanto mais estranho você parecer, mais normal será percebido. Voltemos para o que o povo imagina de um “doutor”. Como essa palavra às vezes é sinônimo de “senhor e superior”, é desconexo dessa figura mentirosa gostar do que o povo gosta. Por exemplo, é fácil para eu conversar com os amigos de adolescência sobre música. Muitos deles gostam do forró atual, ou pagode da moda, funk, axé, os ritmos da rádio. Se eu falo para eles que não gosto de ouvir músicas desses estilos, eles dão de ombro e, no máximo, falam que também não gostam das músicas que escuto. Tudo termina bem!

Isso é completamente diferente na universidade! Falar que não se gosta de um ícone da MPB é algo inaceitável para muitos! Você pode falar que é ateu, ou mesmo de uma religião obscura do Egito Antigo... Tudo bem! Mas, caso fale: “eu não gosto de Caetano Veloso”, cuidado! Sempre vem um discurso sobre cultura e do que há de errado com você. E se o “doutor” gostar de forró popular? Ou funk? Parece brincadeira, mas isso soa como uma heresia.

Tenho dois amigos doutores que curtem o que o povo gosta. Toda vez que eles falam sobre isso tem sempre um tipo de desculpa como algo “sei que vocês não entendem, mas eu gosto disso, gosto daquilo”.

Eu gosto muito de heavy metal e rock’n’roll, mas o que não falta na universidade são pessoas de cabelo cumprido e vestidas de preto. Esses casos são enquadrados no clichê dos “alternativos”, como aquele que gosta de música dos antigos astecas, ou algo assim. Ninguém torce o nariz para Led Zeppellin, ou U2... São unanimidades iguais ao Caetano Veloso... “coisas de doutor”!!! Na verdade, é apenas clichê, nada além disso.

Fazer um curso de doutorado não implica em adotar uma religião musical, ou qualquer coisa assim.

(3) Clichê da esquerda

Só tenho dois amigos na universidade que falam abertamente que são de direita. Já outro amigo meu, doutor em História, acha isso quase inconcebível! Para ele não é possível alguém com doutorado na universidade que seja “neoliberal”, alguma coisa deve estar errada.

Eu sou de esquerda, decidi isso em meio ao movimento de 2006 por concurso público e melhoria de nossos salários nas três universidades estaduais do Ceará. Até então, não lia sobre política e tinha minha mente centrada na produção científica. Lembrem do primeiro post desta série, a ciência de hoje é assalariada e todas as nossas condições de trabalho hoje são definidas politicamente. Não há como se esquivar disso e quem tenta fazê-lo transfere as decisões da sua vida profissional para outros. Às vezes, isso pode ser um desastre!

Apesar disso, não compreendo meu espaço como hegemônico da esquerda. Ou pior, onde quem é da direita deve ter o tratamento de uma bruxa de Salém.

Universidade de verdade deve ser plural, em todos os sentidos!

(4) Clichê da produção científica

“A grama do vizinho sempre é mais verde”! É assim que muitos falam uns dos outros: que a “área tal” é mais fácil de publicar do que a outra. Entretanto, publicar grandes obras e excelentes artigos não é fácil em qualquer área do conhecimento e nem todos conseguem. Todavia, nenhum “doutor” que conheço reconhecerá abertamente que está com a produção parada, ou não publicou algo depois do doutorado.

No geral, parece que todos os doutores sempre estão ali publicando aos montes, revolucionando a ciência mais de uma vez por ano, ou, em extremos, várias vezes por mês.

Os verdadeiros doutores publicam sim, mas isso é algo intrínseco à sua atuação profissional. Pela experiência todos sabem que os mais falantes e críticos dos trabalhos alheios são justamente os menos produtivos, ou aqueles que nunca publicaram nada importante. Falam muito, fazem pouco!!!

Reunindo esses quatro clichês temos algo assim: “doutor é uma pessoa refinada, que gosta de livros, curte “boa música”, é de esquerda e publica aos montes”.

Eis outro “doutor” que eu não sou!

Na verdade, tendo uma autocrítica, na qual me vejo onde poucos gostariam de se encaixar: “entre os estranhos”!

Agora isso não é clichê de “doutor”, a universidade pelo que ela é como instituição de crítica e construção do conhecimento favorece, claro, aqueles que gostam muito, muito mesmo, de ler e escrever.

A universidade é a casa dos nerds!!!

Hoje em dia está na moda se identificar com isso, acho que principalmente pelo sucesso da série “The Big Bang Theory”. Como bem fala meu amigo Eduardo (doutorando em Física, UFPB): “hoje em dia todo mundo quer ser o Sheldon na universidade”!

“Entre os estranhos” estão pessoas cheias de manias, “tiques”, transtornos obsessivos compulsivos, ansiosas, depressivas, com distúrbio de atenção e, alguns casos, até esquizofrênicas. Exemplos reais não faltam, um amigo meu não pode ver um paliteiro na mesa, ele quebra lenta e cuidadosamente todos os palitos em mínimos pedaços, todos os palitos e nem nota isso! Outro amigo meu me falou que não consegue conversar em uma mesa cujos objetos não estejam em uma determinada ordem e simetria. Esses dois são “doutores” com dezenas de artigos publicados em revistas científicas de prestígio. Eles também são gente boa! Pessoas de meu convívio que gosto muito de ter oportunidade de conversar.

Eu tenho minhas manias, segue uma pequena lista:

(1) Detesto viajar

(2) Detesto experimentar coisas que saiam de minha rotina

(3) Detesto modas (carro branco, TVs, iPhone, corte de cabelo, roupas, essas coisas)

(4) Gosto muito de usar óculos

(5) Gosto muito mais de revistas em quadrinhos do que futebol

(6) Gosto muito de café (olhem aí outro clichê universitário: “café é quase uma divindade idolatrada nos laboratórios e salas de reunião")

(7) Eu ODEIO clichês!!!

No supermercado eu tento parecer “normal”, mas tenho certo pavor desses ambientes com temperatura controlada, musak, pessoas sorrindo e muitas embalagens coloridas dispostas em uma sequência para incitar o consumo. Não quero chamar a atenção, mas vejo tudo aquilo sem sentido algum, enquanto pessoas acham o melhor da vida!!!

É assim mesmo, somos Lamarcks assalariados, rockstars, ou simplesmente sujeitos estranhos cheios de manias.

Naquela tarde em Juazeiro do Norte – CE, eu e Robson Ávila, acompanhados por Allysson Pinheiro, estávamos felizes por comprar “gibis” antigos e conversar sobre os mais diferentes interesses... Dos super-heróis dos quadrinhos até as extinções em massa.

Três doutores de verdade, de bermudas e chinelos, ninguém nos cumprimentou na rua: “eu fico de olho no carro, doutor!”. Isso é bom! Estamos longe desse tipo de “doutor” que é semelhante ao cumprimento de “coronel”. Nos corredores da Universidade não somos diferentes, sorrimos cumprimentamos todo mundo. Somos pesquisadores, orientadores de alunos (novos doutores), autores e co-autores de trabalhos científicos, ou simplesmente... Professores!!!

Eis minha Vida de Doutor!!!

6 comentários:

Waltécio disse...

"ADVICE FOR THE YOUNG AT HEART"

Aqui segue uma lista de conselhos para os jovens talentos, os futuros doutores:

(1)Um ótimo aluno é independente e produtivo e quando orientado por um professor também produtivo isso resulta na melhor união.

(2)Se você não é daqueles que dormem em laboratório, então um orientador produtivo pode ser a diferença em sua vida.

(3) Um aluno não produtivo quando orientado por um professor também não produtivo... não há mágica, ou oração que resolva esse desastre.

(4) Notem que você pode ser muito produtivo ao lado de um professor produtivo. Alguns confundem as bolas e acham que são até melhores que seus orientadores. Isso só ficará claro, quando esse aluno se formar e ficar sozinho. A produção depois da orientação é aquela que mostra qual o peso do professor tinha para aquele jovem talento.

(5) Evite ao máximo ter desentendimentos com professores. Eles poderão depois estar em bancas de concursos, avaliar trabalhos, ou simplesmente ser o melhor amigo do seu orientador! Inimigos assim se deve evitar, há muitos casos infelizes que conheço e não quero que isso aconteça ao meu pior inimigo.

(6) Meus filhos ainda são crianças, Daniel tem 8 anos e Gabriela 4. Gostaria que eles investissem na carreira que seus corações desejassem. Não importa se é na Matemática, ou nas Letras, contanto que sigam em frente até completar seus estudos e a formação completa vai até o DOUTORADO!!! Nada de parar no meio do caminho.

Desejo isso para meus filhos e também para você, se estiver trilhando ou planejando trilhar esses caminhos.

Ah! Tem muita coisa de ponta cabeça na universidade brasileira... "Mas se quer saber
Se eu quero outra vida... Não! Não!" (citação clichê da música do Djavan!!! ;D).

ADVICE...

Waltécio disse...

Ah! Nunca esqueçam o centro da atuação de um doutor:

"Bem, em todo caso, dá para notar que “quem não publica se trumbica” (imitando aqui o Chacrinha)!!!"

E cuidado para não se transformarem naqueles que "falam muito, mas fazem bem pouco!!!" Eita gente frustrada é essa aí!!!

Janete Bezerra disse...

Muito bom!Sempre sabe deixar bons conselhos.

mundusvinus disse...

Por onde tu andas?Nunca mais postou...
abs!

Waltécio disse...

Olá, Vinus! Estou planejando a próxima série de posts. Está demorando, mas será legal... Fique sempre por aqui!

Obrigado pela lembrança!

Unknown disse...

Só quero dizer que os professores universitários que são funcionários públicos e se dizem de direita, se o fazem por identificação com o neoliberalismo, cometem uma contradição "in adjecto", pois, na qualidade de funcionários públicos com estabilidade, deveriam pedir demissão e ir servir ao empresariado. Isso ficaria mais conforme com os postulados que dizem defender: a "livre-iniciativa", o "estado mínimo", o fim dos "privilégios" para os "marajás", a estabilidade no serviço etc. Ficaria mais coerente.

 
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