terça-feira, 2 de novembro de 2010

Não estamos sós: o chassi neural de todos os vertebrados

Há algumas semanas vi a chamada do Globo Repórter especial sobre inteligência entre os animais (em 15/10/2010). Não deu outra, dessa vez resolvi assistir, até porque muito do que seria apresentado fora produzido pela BBC. Entretanto, muitos canais de TV no Brasil enfrentam o mesmo desafio deste blog, transformar linguagem acadêmica, ou mesmo divulgação científica em certo nível para os brasileiros comuns. No caso do Globo Repórter, em minha opinião, foi um desastre.

Primeiro, os animais foram mostrados sem uma sequência evolutiva, daí ora estava uma ave, ora era um molusco, ora um mamífero. Isso resultou em um senso de fortuidade, que aquelas inteligências na verdade eram algo pitoresco, por vezes engraçado e nada havia em conexão umas com as outras, menos ainda com a nossa.

No post anterior foi difícil para mim percorrer milhões de anos de evolução. Descrever o surgimento de células especiais (neurônios) fundamentais para a formação do sistema nervoso. Isso não seria possível sem uma certa graduação que se iniciou com os primeiros seres vivos até as formas mais complexas.

O raciocínio é o mesmo e dando continuidade à evolução do ponto onde paramos, em um oceano repleto com metazoários, uns predando os outros (sem contar as demais formas de interação) e em meio a uma crescente espiral evolutiva rumo ao aumento de complexidade dessas relações, o sistema nervoso se tornou cada vez mais complexo... De ancestrais vermiformes deuterostomados nós vertebrados emergimos para a existência.

O nosso cérebro seguiu o desenvolvimento dos órgãos sensoriais concentrados na cabeça. Visão, audição, olfato, paladar, tato e eletromagnetismo, todos os seis sentidos estão presentes na cabeça dos primeiros peixes. Importante ainda ressaltar a nossa natureza de simetria bilateral. Desde as primeiras formas de vida predadoras como os vermes marinhos platelmintos e nemertinos que somos assim, um lado de nós é a imagem do outro lado refletida no espelho. Todo o nosso corpo é assim, lateralizado!

Em um mar repleto de predadores é importante demais olhar aos lados. Não apenas olhar (até porque a visão não é assim tão eficaz abaixo d’água) e sim ter todos os sentidos em constante alerta para possíveis ataques, ou mesmo para atacar uma presa.

O capricho do evento estocástico da lateralização de nossos corpos é que ela não é perfeita. Ao invés de cada lado processar diretamente os sinais do ambiente, eles são cruzados ao inverso. Todo o seu lado esquerdo é comandado pela parte direita do seu cérebro, o inverso para seu lado direito. Também não é exclusividade nossa, em todos os vertebrados há sempre um lado “preferido” para a ação. Adivinhem?! A maioria dos vertebrados é destra! Claro, e sempre existe também um canhoto entre nós!

Uma hipótese para esse circuito cruzado é fazer com que o organismo como um todo possa ter a possibilidade de interpretar e reagir a estímulos. Por exemplo, um ataque pela esquerda ao cruzar as conexões até a parte direita informa todo o corpo do animal e não apenas o lado atacado.

Não compliquemos mais essa história anatômica e fisiológica, vamos para o que interessa. A partir dos vertebrados o sistema nervoso se tornou muito mais complexo, sendo constituído por várias partes que se sobrepuseram e complementaram-se no decorrer da história evolutiva.

Por ordem de chegada e em termos didáticos temos (ver Sagan, C., 1997. Os dragões do Eden. Editora Gradiva):

(1) Medula espinhal, rombencéfalo [o bulbo, a ponte e o cerebelo] e mesencéfalo.


Essa é a parte mais arcaica do cérebro a qual contém o mecanismo neural básico para a sobrevivência (regulação cardíaca, circulação sanguínea e a respiração e reprodução). É quase a totalidade dos cérebros de peixes e anfíbios.

(2) Sistema límbico formado por amigdala, tálamo, hipotálamo, hipocampo e áreas específicas (giro cingulado, área tegumentar ventral, área pré-frontal).


O sistema límbico é o centro da formação das emoções, tomada de decisões para sobrevivência (ditas “não-racionais” tipo “lutar-ou-fugir” de um predador) e impulsos para o prazer (nossos vícios com drogas e sexo estão correlacionados ao sistema límbico). Aqui estamos todos nós, répteis (isso inclui as aves) e mamíferos.

(3) Neocórtex (lobos frontal, parietal, temporal e occipital), o qual envolve o restante do cérebro nos mamíferos.

O neocórtex é o que muitas pessoas conhecem como “cérebro”, embora seja apenas parte de um todo. É aqui que está o quê e o porquê de sermos como somos... Quanto maior o neocórtex, maior é a cognição. Nós humanos temos um dos maiores, mas, como bem está escrito na evolução o neocórtex não é uma exclusividade nossa.

Elefantes, golfinhos e, sobretudo, todos os macacos do mundo, nós compartilhamos a mesma plataforma de montagem. Como acontece com a indústria moderna de automóveis, de uma mesma plataforma se pode fazer diferentes carros. As variações nesse intrincado sistema refletem as diferenças entre as espécies de vertebrados.

Agora vamos dar reconhecimento ao primeiro trabalho científico que vislumbrou que nossas emoções humanas na verdade evoluíram a partir de ancestrais não humanos. Charles Darwin em seu clássico “A expressão das emoções no homem e nos animais” (1872; lançado no Brasil pela Companhia das Letras em 2000) foi o primeiro a demonstrar, com base em observações científicas (hoje chamamos essa área do conhecimento biológico de Etologia), que compartilhamos com outros vertebrados sofrimentos, lágrimas, ódio, raiva, alegria, bom humor, amor, devoção, surpresa, horror, vergonha e modéstia. Os dois extremos as lágrimas e o sorriso, já pensamos que eram exclusividades humanas. Hoje sabemos que elefantes choram e chimpanzés riem e muito!

Uma das melhores revisões atuais sobre emoções e cognição nos animais está no livro “Quando os elefantes choram – A vida emocional dos animais” (Masson, JM. e McCarthy, S., 2001. Editora Geração). Aqui você encontrará logo na leitura da contra-capa: um búfalo que patina no gelo para se divertir; um chimpanzé que chora pela morte de sua mãe e morre de tanta tristeza; um gorila tímido que brinca com bonecas quando ninguém olha para ele; corvos que usam pedaços do teto do Kremlin como tobogãs; e a voz de um papagaio africano que diz com estas palavras “Volta aqui! Eu te amo! Sinto muito! Quero voltar pra casa! (leia também: Pepperberg, IM., 2009. Alex e eu: como a relação de amor entre uma cientista e um papagaio revelou os segredos da inteligência animal, Editora Record).

Por que isso ainda nos surpreende? Por que uma rede de TV anuncia um especial sobre inteligência animal como se fosse algo exótico e até “engraçado”?

Como bem sabemos, nós possuímos em comum as mesmas “borboletas da alma” (neurônios) e, entre os vertebrados, compartilhamos o mesmo “chassi neural” (Medula espinhal, rombencéfalo, mesencéfalo, sistema límbico e neocórtex). O que nos faz amar e sermos inteligentes, também está presente na anatomia e fisiologia animal, antes mesmo de sermos o que somos.

Claro, essas palavras escritas aqui, em um ambiente digital de plástico e sílica e transmitidas por cabos de fibra óptica, deixa-nos a sensação de sermos muito diferentes. Além do mais, olhem para nosso prato de comida repleto de cadáveres de animais e plantas. Se reificamos (de reificar, transformar seres em “coisas”) tudo e usamos de nossa fantasia de não sermos deste mundo, os filhos dos deuses, fica fácil de escravizar, matar, cortar em pedaços e comer outros seres vivos.

Seu cão sente emoções verdadeiras por você, o seu gato realmente detesta ser incomodado quando dorme, o pequeno potro de sua fazenda brinca por pura diversão no pasto como se fosse uma criança humana, aquele pequeno asno urrou de dor ao ser espancado na rua, seus olhos encheram-se de lágrimas. Isso não é uma caricatura antropomórfica, cada um de seu jeito, cão, gato, cavalo, asno, humano, todos esses mamíferos possuem mais em comum do que grandes diferenças. Importante ressaltar ainda, diferenças essas só estabelecidas por milhões de anos de evolução que nos separam dos demais vertebrados, invertebrados, plantas e micróbios.

É estranho como somos tão preconceituosos com outras espécies ao ponto de negar a elas a existência de outras inteligências, nem mesmo sentimentos básicos. Não compreender como funciona a mente de um polvo é uma coisa, mas a nossa de vertebrado é outra. Aqui entre os nossos mais semelhantes, a conexão de mentes é máxima. O grito de dor de um porco nos trás terror, ou você ainda não sabe por que construímos os matadouros de animais bem longe do centro das cidades? Se você tiver curiosidade de saber coisas assim, recomendo a leitura do livro “O homem e o mundo natural” (Thomas, K., 1988. Editora Companhia das Letras) para terem idéia de porque comemos o que comemos, como matamos e a escolha de nossos animais de “estimação”.

Em termos de cognição o próximo post será apenas sobre humanos, como muito bem gostamos de fazer, uma atenção especial na origem da consciência, a mente, do que é formado nosso pensamento e os sonhos de ficção científica que agora começam a se realizar, podemos transmitir pensamentos fora do corpo e, quem sabe, em futuro próximo, armazenar registros eternos de pensamentos humanos em máquinas.

Esse será o dia da transcendência para algo diferente da natureza. Será o dia da Inteligência Artificial e das Histórias de Robôs editadas por Isaac Asimov se tornarem realidades. Até lá, continuamos o que somos, mamíferos emocionais, macacos neuróticos e meros trabalhadores explorados.

A importância dos seres humanos hoje reside na ligação deles com a biota. Então, olhe dos lados, leia um pouco e faça a conexão, perceba um mundo cheio de sentimentos. Você não está sozinho, há outras inteligências na natureza.

Referências

Darwin, CR., [1872] 2000. A expressão das emoções no homem e nos animais. Companhia das Letras.

Masson, JM. e McCarthy, S., 1998. Quando os elefantes choram: a vida emocional dos animais. Geração Editorial.

Pepperberg, IM., 2009. Alex e eu: como a relação de amor entre uma cientista e um papagaio revelou os segredos da inteligência animal. Editora Record.

Sagan, C., 1997. Os dragões do eden. Editora Gradiva.

Thomas, K., 1988. O homem e o mundo natural. Companhia das Letras.

Links
Inteligência dos Elefantes
Inteligência dos Animais

Inteligência Animal Superinteressante

Inteligência Animal Wikipédia
Inteligência nos Animais
Animais têm Emoções
Emoções nos Animais

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Não estamos sós: as borboletas da alma

"Quem eu sou?" Essa é uma das perguntas básicas e marcantes na vida de todos nós. Notem o seguinte, essa pergunta é resultado de raciocínio e uma determinada linguagem, afinal somos um tipo muito particular de macaco inteligente e tagarela! "Quem eu sou?" é algo muito humano, mas autoconsciência não é exclusividade de nossa espécie.

Observe abaixo os dois tipos de formas de vida:


Bactérias e protozoários são formas de vida nas quais uma única célula é responsável por tudo. Isso aprendemos logo no início do ensino em Ciências e da graduação em Ciências Biológicas (p.e., disciplinas de Biologia Celular e Zoologia dos Invertebrados). Nas palavras do que ouvi de meus mestres em sala de aula: “Uma ameba é na verdade tudo que somos em uma única célula! Nós, multicelulares e portadores de tecidos, temos nossas células diversificadas e com diferentes funções. Precisamos que algumas células captem sinais do ambiente, outras analisem e ainda mais que outras efetuem ações adequadas (secreção de hormônios, movimentação muscular, digestão, transporte de metabólitos, etc). Acreditem, uma ameba faz tudo isso sozinha. Ela, uma única célula, é sensível e efetora ao mesmo tempo. Mais ainda, segundo o que compreendemos como aprendizagem (mudança de comportamento), isso também está presente em seu nível mais fundamental para sobrevivência. Exemplo, coloque um obstáculo na frente de uma ameba, ela irá tentar contorná-lo, ela mudará seu deslocamento. Em outras palavras, essa célula, sozinha, conhece o problema e, depois de analisar a situação, resolve tudo.”

Um aluno de Ciências Biológicas é assim introduzido ao estudo da vida com informação e chocando-se com seus preconceitos. Afinal, carregamos erroneamente uma série de interpretações do senso comum para a natureza e esta é muito maior do que nós, nos gerou, está acima dos desejos e ilusões do macaco pleistocênico que somos.

A ameba é um exemplo de infinitas formas de grande beleza. Todos os seres vivos vivem no mundo de forma eficaz e, no final das contas, fazem, em diferentes maneiras, a mesma coisa: metabolismo, autopoiese, hereditariedade, reprodução e evolução. Sumariamente: sobrevivem! Essa sobrevivência é o que chamo de um estado particular da matéria, a mesma poeira das estrelas, só que de forma animada e consciente.

Estamos aqui para entender como chegamos a um grau muito sensível dessa consciência. Sim, nós humanos somos o primeiro evento de maior complexidade da autoconsciência da matéria neste planeta. Nossa espécie possui um milhão de anos, enquanto que a civilização tem entre 10 a 20.000 anos. Como já descrito aqui no Macaco Alfa [clique: A Desumanização do Macaco], além dessa história ser relativamente breve na Terra, temos apenas dois séculos de ciência como a conhecemos atualmente no Ocidente. Ou seja, somente cerca de 0,02% de toda nossa história!!! Estamos ainda no início da compreensão dos processos naturais, quem somos nós, de onde viemos, o que é o Universo e, claro, como tudo surgiu.

Nesse caminho trilhado até o presente não foram poucas as vezes que pensamos ser os únicos na natureza a ter sentimentos e raciocínio. Óbvio, comparativamente, nós temos sim, um grau muito complexo de sensitividade, análise de dados e aprendizado. Temos uma diferença de grau em complexidade! Enfatizo, uma diferença apenas de grau. Sensitividade, análise de dados e aprendizado precedem a nossa origem, datam de milhões de anos antes. Como no exemplo das amebas, no básico para a sobrevivência, não é necessário nem a presença de células especiais (neurônios) para que a vida possua significado, consciência e aprendizado. Nós temos mesmo é muito preconceito contra as outras espécies e claro, contamos a história para nós mesmos que somos sozinhos! Ora filhos de deuses, ora semi-deuses... criaturas divinas. Nós olhamos aos lados e não escutamos nada em resposta! Esse “silêncio” nos dá a sensação de solidão, trancados em nossa ilusão perceptível alienada (por diversos processos históricos e sociais). Pode-se chegar ao extremo dessa alienação quando fingimos nem sermos seres biológicos como qualquer outra forma de vida neste planeta, apenas um boneco de barro.

Uma das revoluções da Neurociência nas últimas décadas deixou claro o erro de Descartes: “nós primeiro existimos e depois pensamos”. Até me divirto muito com meus alunos em sala de aula demonstrando que biólogos respondem bem a perguntas simples como “Quem veio primeiro, o ovo, ou a galinha?”. Respondemos muito seguros: “claro que é o ovo amniótico!”

Como, portanto, surgiu o sistema nervoso, este responsável pelo que de mais sublime define o que somos enquanto humanos?

Vamos voltar às bactérias e protozoários. Recorde comigo, que é a membrana citoplasmática que possui os receptores moleculares responsáveis em reconhecer as secreções de uma presa, ou da proximidade de um predador, as moléculas de alimento, mudanças de temperatura e variações de luminosidades. A membrana plasmática é a interface entre o que é o mundo físico e o indivíduo biológico.

Vamos agora ao desenvolver do principal objetivo da vida, que é ela própria (o “ser-em-si”)! Viver é continuar vivo, essa regra é cumprida à risca entre os seres unicelulares. Eles são eternos, fisicamente falando! Todavia, a Terra tem recursos e espaços limitados, por isso, guarde essa frase: criaturas unicelulares eternas vivem em um mundo finito. Isso quer dizer que não se pode sobreviver de uma única forma para sempre, pois a Terra logo estaria sobrecarregada de indivíduos que fazem o mesmo. Com necessidades iguais por recursos similares a competição será mais acirrada a cada aumento da população. Uma das regras básicas então é conseguir explorar recursos de formas diferentes para escapar da competição intraespecífica. Some ainda o surgimento de parasitas/ predadores que tornou tudo isso mais dramático. As próprias células vivas passaram a ser elas mesmas recursos a serem explorados.

Prestem bastante atenção agora e guardem isso com vocês: em meio à competição, uma das formas de maior sucesso para a sobrevivência foi a... COOPERAÇÃO!!!

Uau!!! Aprendi isso ao ler o livro “O Planeta Simbiótico” (2001, Editora Rocco) da bióloga norte-americana Lynn Margulis . Hoje o papel decisivo da cooperação (simbiose) na evolução é tido como alternativa e importante contraponto feminino na ciência em relação a simples idéia da competição entre indivíduos, tão exultada em textos mal escritos sobre seleção natural. Afinal, nós homens somos apegados demais à competição, à luta e ao status. Não é uma coincidência vermos os animais e toda a natureza dessa forma: “garras e dentes rubros de sangue” - um clichê masculino. Margulis (2001) defendeu a ideia de que os grandes momentos da vida em seu processo evolutivo foram realizados por cooperação: (1) no chamado “Mundo RNA” moléculas “colaboraram” entre si para formar o primeiro indivíduo vivo com DNA (bactérias); (2) depois duas células (uma bactéria, hoje chamada mitocôndria, e um protozoário) passaram a viver juntas (eucariotas heterotróficos – nós inclusos); (3) três células – protozoário, mitocôndria e uma microalga bacteriana (cianofícea), chamada por nós de cloroplasto, resultaram em eucariotas autotróficos. Lembrem-se ainda que a nossa aparente complexidade multicelular surge justamente da união de duas criaturas haplóides: ovúlo e espermatozóide!

Então, colaborar para diversificar, criar algo novo, livrar-se de inimigos (parasitas/ predadores) e explorar recursos e ambientes diferentes é algo vital para os seres vivos. Neste planeta simbiótico há colônias de protozoários, criaturas unicelulares que “decidiram” viver juntas (exemplo clássico dos Volvocales e Choanoflagellata). Uma maior intimidade dessas células resultou no surgimento de seres como os Poríferos. As esponjas do mar são colônias complexas de células, não há tecido verdadeiro ainda nesses seres e para ter o tamanho que possuem é necessário que haja uma diversificação de função entre as suas células. Afinal, nem todas estarão em contato com o ambiente, mas todas continuarão com as mesmas necessidades de sobrevivência que uma ameba.

No início de tudo, as células que passaram a viver mais no interior da colônia necessitaram receber sinais do ambiente para determinarem a ação delas segundo um conjunto de “ordens” e funções moleculares, que leva à sobrevivência individual e de toda a colônia. Nas esponjas as células que fazem essa comunicação molecular, vias de regras, são os amebócitos.

Estima-se que por volta de 600 milhões de anos atrás surgiram os primeiros animais propriamente ditos (Eumetazoa). Esses possuem tecidos celulares com presença de junções citoplasmáticas – desmossomos e interdigitações da membrana plasmática. O exemplo vivo que representa essa fase pode ser visto entre os Placozoa.

Com esse aumento da ligação entre as células e conseqüente origem da ectoderme (epiderme), é aqui, exatamente onde as células que estão em contato com o ambienteque surgem os primeiros neurônios. As células da ectoderme se especializaram em captar sinais, enviá-los quimicamente, interpretá-los e designar o conjunto específico de outras células (mesoderme – músculos e endoderme – grande parte do trato digestório) para uma resposta adequada a esses estímulos. Os modelos vivos que usamos para apresentar a forma mais simples de tudo isso são as hidras, anêmonas, medusas e corais (cnidários – estes sem mesoderme) e ctenóforos (um dos primeiros grupos triploblásticos – com ecto, meso e endoderme).

Para deixar bem claro a todos: o sistema nervoso surge para integrar e modular a função de todos os outros sistemas. É necessário unir todas as células da colônia (no caso dos poríferas isso é feito pelos amebócitos), ou do organismo metazoário (neurônios).

É simples, não é?! Uma ameba sabe tudo no ambiente que é necessário para sua sobrevivência. Caso uma célula tenha de viver sem contato com o meio físico e cooperar com outras para sobreviverem juntas, algumas dessas células tem que necessariamente ocupar a função sensitiva e informar a todas. São as primeiras jornalistas da Terra!


Há outra metáfora mais poética, os neurônios são as “Borboletas da Alma”!!! A história da descrição deles e suas funções estão brilhantemente descritas no livro homônimo de Drauzio Varella (2006), médico brasileiro e esmero divulgador da ciência.

Vamos usar nossas borboletas agora: se captar sinais, interpretá-los segundo necessidade de sobrevivência e ter um comportamento designado por isso é inteligência, então bactérias e amebas possuem o nível mais fundamental disso tudo! Essas criaturas estão vivas e, como tais, interagem de forma inteligente (ações de sucesso para sobreviver). A inteligência das bactérias e amebas funciona em seu mundo, atende suas necessidades de forma sublime e eficiente.

Se estamos falando de uma “terceirização” desses funções, onde um grupo de células será responsável por parte disso (captar e interpretar sinais do ambiente para sobrevivência), então estamos aqui falando de todos os metazoários (animais)! Todos os animais por definição possuem um sistema de células específicos com essas funções! Todos os animais possuem sistema nervoso! Portanto, todos os animais possuem borboletas da alma!!!

Calma, trataremos de nós mesmos, o raciocínio humano no final desta série. Por enquanto, o objetivo aqui é responder: de onde vieram nosso neurônios e por que surgiram.

Se você está surpreso em saber que não é necessário um sistema específico de células sensitivas para sobreviver (bactérias, protozoários, algas, fungos e plantas), ou que isso não é uma exclusividade humana... Simples, você tem preconceito contra as outras formas de vida. Você deve achar que todos devem ser inferiores aos humanos! É um tipo de preconceito milenar, sutil, ainda ensinado e tido como verdade nos dias de hoje. Muitos nem gostam de ouvir falar e respondem assim: “Como eu posso ser comparado a uma ameba?” “Eu sou maior, eu sou melhor, eu sou o centro de tudo, eu... eu... eu...”

Criatura triste e mal resolvida essa, não? Essa figura que acabo de descrever fala de si mesma como a mais bela de todas e superior à própria vida. Essa caricatura da alienação humana sabe em seu íntimo que não é assim. Afinal, após décadas de estudos psicológicos entendemos hoje que toda mania de grandeza e soberba são na verdade reflexos de complexo de inferioridade!

Somos um animal frágil e com grande capacidade cognitiva. Nós sabemos demais! Temos consciência da vida em um patamar maior. Nesse conhecimento, onde nossa mente trabalha com parâmetros evolutivos do amor de animais sociais que somos, a auto-estima aguçada e a cognição flexível se relutam em aceitar um fenômeno presente apenas nas criaturas multicelulares sexuadas: a morte do indivíduo!

Tem mais! A morte, as forças naturais (tempestades, vulcões, etc.) e a admiração que sempre tivemos aos vertebrados nas planícies (sobretudo aos grandes gatos, crocodilos e serpentes – os nossos predadores) já foram apontados como a razão por termos desenvolvido saídas psicológicas para suportar a transitoriedade das coisas e nossa fragilidade.

-“Frágil, eu?! Que macaco nu, pequeno e vulnerável que nada!!! Quem domina o fogo, hein?! Quem pode matar até os leões com lanças? Quem conversa com os Deuses depois de tomar um chá de cogumelos?! Não somos animais, somos filhos dos deuses!!!”

É, esse macaco aí tem problemas para resolver com um bom psicólogo, sem esquecer de uma consulta também no psiquiatra!

Voltemos para o início do sistema nervoso. Após surgirem seres que são aglomerados de milhões de células e que conseguem se diferenciar em tecidos, estes, agindo coordenadamente como órgãos e sistemas. A individualidade de uma célula passou a ter um centro de controle e este agora será a própria individualidade de uma criatura plural. Composta de várias cópias (por mitose) de uma única célula, a coletividade torna-se um só pelo processamento e integração realizados pelas células sensitivas (neurônios).

Entretanto, a regra da vida continua a mesma: explorar recursos, auto-organizar-se (autopoiese), sobreviver, escapar dos inimigos (parasitas/ predadores), reproduzir-se e evoluir para continuar existindo. Se esse é o impulso inicial e causa de tudo, os primeiros animais com sistema nervoso seguiram o mesmo caminho adiante no tempo-espaço. Eles próprios, assim como foram às primeiras células, tornaram-se recursos (alimento, às vezes até habitat) disponíveis às novas formas de vida. Em uma espiral de crescente complexidade para assimilar informações, analisá-las e agir, o sistema nervoso propiciou aquilo que chamamos inteligência. Entre várias formas e diferentes expressões, durante a evolução biológica as criaturas com cérebro surgiram.

Algumas pessoas que conheço sempre ficam surpresas quando assistem um documentário sobre comportamento animal, ou leem alguma notícia sobre isso. Bem, eu não! Se você é biólogo, isso também não deveria lhe surpreender. Mesmo assim, esse é meu dia a dia em sala de aula com alunos de repente apresentados para um mundo de seres sensitivos, ou nas conversas com amigos professores-pesquisadores de outras áreas. É mais ou menos assim:

-“Um polvo pode fazer isso?!”

-“As formigas não são robôs instintivos?”

Vamos começar a olhar dos lados?! Conectar-se aos outros seres começa com boa leitura e olhos atentos. No mar, antes de qualquer vertebrado surgir, antes dos insetos na Terra, uma mente elaborada evoluiu entre os cefalópodos (polvos, lulas e sépias).

Acostume-se com isso, porque antes achávamos que éramos os únicos a ter autoconsciência. Aí colocamos espelhos na frente de chimpanzés, golfinhos, elefantes e papagaios... [breve silêncio para expectativa]... [mais um pouco]... [SURPRESA]: Eles reconheceram a si próprios em seus reflexos! Diferente de outras inteligências que, ou são indiferentes à sua imagem refletida, mas, diga-se de passagem, não ao seu cheiro (individualidade química), ou vêem o reflexo como outro animal diferente de si mesmo.

Está na literatura, polvos, que chamamos de meros animais invertebrados, “vermes” de corpo mole (Mollusca), também conseguem identificar a si próprios no espelho!

Uma explicação simples para isso está na proporção do relativo maior tamanho, superfície, quantidades de neurônios e suas redes de conexão. Todos esses animais citados, inclusive nós, possuem grandes cérebros. É fácil de entender, maiores cérebros, padrões de comportamentos complexos e... mentes brilhantes!!!

Ok! Autoconsciência não é mais exclusividade nossa e nem tão pouco dos animais vertebrados. Vamos repetir para fixar! A consciência de si próprio (isso inclui sentimentos de raiva, amor, felicidade, tristeza e capacidade de mentir) surgiu há milhões de anos antes de nós macacos presunçosos.

Nós ainda não entendemos a mente dos polvos, tão pouco as outras mais próximas como a dos nossos irmãos chimpanzés. Mais ainda, o estudo de nossa própria mente e consciência ainda está cheio de mistérios a serem compreendidos. Mesmo assim, vamos tentar ir um pouco mais longe do que autoconsciência.

Se mentes relativamente semelhantes à nossa (por exemplo, os chimpanzés) são difíceis para nós compreendermos hoje, imaginem seres com inteligências completamente diferentes?! Quando olhamos para um caranguejo, sem contar a vontade de transformá-los em comida, damos de ombro como se ele fosse uma forma de vida estúpida. Será mesmo?! Eles sabem exatamente os ciclos das marés, conhecem muito antes dos humanos os ciclos lunares e as mudanças do mar através das estações do ano. Muito antes da astronomia dos babilônicos e maias, caranguejos estão em sintonia com os céus!!! Se isso não for inteligência, nada mais é!!!


Vamos a outro exemplo comum, que é de assustar. Somos animais sociais, tentamos tanto e ainda vamos continuar tentando o melhor de nós mesmos para construirmos um mundo mais justo. Todavia, há séculos que descobrimos a perfeição da vida social ao estudarmos cupins, formigas, vespas e abelhas. Sociedades perfeitas, muito mais do que fizemos como humanos até agora. Conhecendo nossa natureza e história, dificilmente conseguiremos ter sociedades tão perfeitas como essas construídas pelos insetos.



Sobre isso, um aluno meu certa vez falou:

-“Formigas são robôs genéticos! Imagina eu nascer um operário que não fará sexo, que não pode se tornar um rei?!”

Respondi assim:

- “Primeiro, tenho pena das pessoas que acham que todos os humanos possuem essa liberdade total. Deveriam ler mais sobre a história das civilizações. Segundo, é uma ilusão achar que se nasce uma tábula rasa, sem genética, sem instintos (como esses que você não gosta nas formigas), sem qualquer processo histórico e mesmo sem amarras sociais. As pessoas podem até se reproduzir, mas estão longe de se tornarem reis e rainhas. Eu diria, que a maioria será escravizada, ou explorada, como operários oprimidos. As formigas operárias não passam por isso, não há chicotes, ou amarras do capital, não há prantos, solidão, indiferença e suicídio entre elas. Há a vida em plenitude, vida de verdade, sem qualquer ilusão, sem precisar comprar nada para ser feliz. Terceiro e mais importante, seu preconceito é um clichê tedioso! Tudo que não conhecemos nos traz essa estranheza e medo. As incertezas sempre são traduzidas assim, com um complexo de inferioridade, inseguros cheios de auto-afirmação. Para ficar claro, temos é medo de sermos nós mesmos os inferiores. Dá para sentir isso? Imaginem, por que será que toda a natureza se cala quando nós falamos alto que somos filhos dos deuses? Nenhuma outra forma de vida na Terra concorda com nossa loucura! Quer saber? A rainha das formigas possui sua função, faz sexo e é condenada a ficar no escuro depositando ovos a vida inteira. As formigas operárias e soldados andam, arriscam-se, travam batalhas, cuidam de todos. Não dá para comparar isso com nossa sociedade doentia. Somos diferentes e não entendemos os outros! Imaginem, uma sociedade perfeita?! Como compreender algo que nós não conseguimos fazer?!”

Cupins, formigas, vespas, abelhas, caranguejos, polvos, mundos de inteligências tão diferentes da nossa. Tudo resultado do impulso da vida, através da evolução de células que cooperam entre si.

Nós não estamos sós na Terra! Na verdade, estamos é doentes há tempos! Falando sozinhos uns com os outros, enquanto milhares de vozes, comportamentos e a sabedoria da Vida passam ao largo.

Leia sobre os animais, observe tudo a sua volta e conecte-se às mentes na natureza!

As borboletas da alma estão por toda parte!

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Obs.: Antes de conversarmos sobre nós mesmos e coisas incríveis que conseguimos fazer hoje através da ciência/ tecnologia (pe., transmitir o pensamento de um macaco rhesus por fibras ópticas), vamos explorar com mais detalhes as inteligências similares à nossa. No próximo post: a mente brilhante dos vertebrados.

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Para saber mais:
Alves, RRN e Nishida, AK., 2002. A ecdise do caranguejo uçá, Ucides cordatus L. (Decapoda, Brachyura) na visão dos caranguejeiros. Interciencia, Vol. 27, n.3, p.110-117. [clique: caranguejo uçá]
Brusca, RC. e Brusca, GJ., 2007. Invertebrados. [2 ed.] Editora Guanabara.
Lopes, RJ. Polvos [clique: Mistério de muitos braços]
Lopes, RJ., 2009. Além de Darwin - Evolução: o que sabemos sobre a história e o destino da vida. Editora Globo.
Margulis, L., 2001. O planeta simbiótico: uma nova perspectiva da evolução. Editora Rocco.
Margulis, L. e Sagan, D., 2002. O que é vida? Editora Jorge Zahar.
Nielsen, C., 2001. Animal evolution - Interrelationships of living phyla. [2 ed.] Oxford University Press.
Varella, D., 2006. Borboletas da alma: Escritos sobre ciência e saúde. Companhia das Letras.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Apresentação - Não estamos sós: as outras inteligências da Terra

"Chega a ser absurdo ficar se perguntando se estamos sozinhos no Universo. Não estamos. Nunca estivemos" (Lopes, RJ., 2009 . Além de Darwin. Editora Globo).

Vamos iniciar mais uma série de três textos, dessa vez abordando algo muito bacana: a origem do sistema nervoso, sua evolução e as diversas mentes além da nossa que estão presentes hoje aqui mesmo na Terra.

Se nossa cognição gigante e fluida ainda está sendo compreendida por nós mesmos, há ainda todo um abismo que nos separa das outras mentes presentes na natureza. Após iniciarmos nossos estudos sobre essas infinitas formas de grande beleza garanto para vocês que não precisamos de mundos digitais cheios de cores e efeitos 3D para nos impressionar. Aliás, nenhuma tecnologia cinematográfica ainda é capaz de retratar em detalhes a beleza da vida na Terra. Comparado ao nosso planeta, Pandora é um desenho mal feito!

Já que toquei nesse ponto, em Avatar os Na'vi parecem entender a conexão da vida e saber que não estão sozinhos no seu planeta. Isso eu tiro o chapéu para James Cameron, porque se há algo manifesto em nossa espécie, tão inteligente e dona de si, é sua alienação e absurda falta de humildade em reconhecer que ainda tem muito que aprender. Em palavras mais diretas: após dois séculos de ciência ocidental como a conhecemos hoje, sabemos muito pouco sobre a vida e nem conseguimos, no mínimo, enumerar quantas outras espécies existem hoje ao nosso lado. "O mistério dos mistérios" (segundo Charles Darwin) continua nos desafiando no século XXI!!!

No dia a dia, você sai de casa e volta, encontra pessoas, liga a TV, escuta música, estuda para se profissionalizar... Mal olha ao lado, menos ainda para os céus! Aí compra uma revista, ou vê um vídeo no You Tube sobre ETs e nosso desejo de fazer contato com outras formas de vida inteligentes... O irônico disso tudo é que há formas inteligentes do nosso lado e, pelo simples fato de não serem humanas, quase que ignoramos por completo isso.

"Animais" que muitos acham "instintivos" e/ou "robôs genéticos" são constituídos como nós mesmos. É nossa pura e simples ignorância de entendermos essa conexão com nossa mente, menos ainda, que se somos frutos do mesmo processo de evolução de todas as formas de vida deste planeta... Assim, voltamos ao início desta apresentação, surpreenda-se: NÓS NÃO ESTAMOS SÓS!!!

Como nos atrevemos a gastar tanto dinheiro em projetos como o SETI ("Search for Extra-Terrestrial Intelligence") à procura de uma mente similar a nossa, mas esquecemos que aqui na Terra há miríades de outras mentes que não entendemos?! Esta série de textos trata exatamente disso. No primeiro irei abordar a origem do sistema nervoso e como é viver como um invertebrado marinho, da origem até os mais inteligentes de todos, os polvos e lulas.

No segundo texto trará as mentes aguçadas dos vertebrados e os exemplos de cognição como o papagaio Alex que, por incrível que pareça, deixou-nos a todos surpresos em saber como uma ave pode ser tão inteligente(?!).

No último, não deixaria de reservar apenas para nós primatas. Chimpanzés são idênticos a nós, diferem apenas em grau! Somos maiores em tudo... E isso não quer dizer absolutamente nada!

Recentemente o renomado físico britânico Stephen Hawking [clique] alertou sobre o que poderia acontecer se esse nosso desejo de entrar em contato com mentes alienígenas similares a nossa se realizasse. A história humana, que muito bem conhecemos, já demonstrou na prática o que é possível quando grandes mentes similares se encontraram. Ou uma delas é varrida da face da Terra (exemplo dos neardenthais), ou é escravizada à força. Mais ainda, nos dias de hoje senão somos escravos, somos explorados pelos senhores do Capital.

O paleontólogo britânico Simon Conway Morris deixou claro em seu livro "Life's Solution - Inevitable Humans in a Lonely Universe" (2003 - Cambridge University Press) que nós humanos até podemos ser o primeiro experimento de grande cognição neste planeta e o único que conhecemos no universo, mas, isso não quer dizer o último! Caso nos matemos por coisas tolas como um sistema alienado de vida artificial (Capitalismo), ou o planeta se torne inóspito para mamíferos... A natureza seguirá sem nós e outras grandes mentes poderão surgir.

Espero que não ponhamos tudo a perder e que saibamos aproveitar toda a dádiva que temos. Mas, se erramos ao ponto de não mais existir, pelo menos que outros no futuro aprendam como nós macacos trocamos os pés pelas mãos por tolices.

Feita a apresentação! Venha agora viajar comigo entre a beleza e mentes de nosso planeta. Sinta o mundo pulsar e nossa solidão se dissipar simplesmente por olharmos ao lado. Não há uma mente no universo, há milhares delas só aqui na Terra!!!

Conecte-se... e comunique-se com elas!!!

Não estamos sós: as outras inteligências da Terra!!!

terça-feira, 4 de maio de 2010

I CICLO DE PALESTRAS SOBRE BIOLOGIA EVOLUTIVA - UFCG/ Patos - PB

Não percam o I Ciclo de Palestras sobre Biologia Evolutiva da Unidade Acadêmica de Ciências Biológicas - Patos/ PB - Universidade Federal de Campina Grande - UFCG.

Espero todos por lá!

domingo, 25 de abril de 2010

As raízes de nossa dor

Os dois posts anteriores marcaram um dos pontos mais políticos aqui no Macaco Alfa. No primeiro post tentei o meu melhor, como de sempre, isso quer dizer "traduzir informações de livros e artigos científicos em linguagem acessível". Na questão específica do primeiro post (A Barbárie), quatro livros são a chave para entender o cerne do pessimismo, ou mesmo pela esperança de mudanças verdadeiras. As referências são:

Barber, BR., 2009. Consumido – Como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Editora Record.

Foster, JB., 2005. A ecologia de Marx – materialismo e natureza. Editora Civilização Brasileira.

Lipovetsky, G., 2007. A felicidade paradoxal – Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Companhia das Letras.

Perrault, G. (Org.), 2005. O livro negro do capitalismo. Editora Record.

No segundo post (A Classe Média) está uma síntese da Classe Média brasileira escrita de forma brilhante pelo teólogo e escritor Frei Betto. Eu não conseguiria escrever algo melhor, achei o texto perfeito demais e pela primeira vez postei algo assim na íntegra aqui no Macaco Alfa.

Agora segue este terceiro post para encerrar esse assunto. Bem, aqui estou envolto a uma trilogia não planejada, cuja costura resulta em minha compreensão do mundo. Passei muito tempo de minha vida tentando entender de onde vinha aquilo que identificamos coletivamente como algo prejudicial às nossas vidas... A dor de todo mal.

De certo, entre tantas outras perguntas que me moveram na adolescência, essas eram as piores. O sentido da vida, de onde nós viemos, questões metafísicas como a vida pós-morte... Consegui um bom entendimento de tudo isso com boas leituras, reflexões e até através de minhas pesquisas no mundo dos animais. Entretanto, quando estou no Shopping e sou maltratado pela cor parda de minha pele, quando escuto às bravatas os discursos alienados contra trabalhadores explorados, quando até amigos falam sem parar de como é “bom viver no capitalismo” e sobre a “ditadura dos socialistas” sem terem lido nada, sem ao menos andarem de ônibus para o trabalho... Pode parecer simples, mas foi difícil de entender com precisão a origem, transformação e continuidade de todo esse mal.

Essa minha curiosidade não é uma questão apenas pessoal. Desde 2003 trabalho no interior do Ceará e aqui as coisas são diferentes de onde eu vim. Sou nordestino dos subúrbios do litoral, onde não há seca, onde a Música Urbana é verdadeira, onde proletários das fábricas não faltam por todos os lados.

Aqui hoje no interior do nordeste, quase não há grandes fábricas. A agricultura nem de longe reflete algo para ser classificado de agronegócio. Há muita prestação de serviço de um lado e do outro aposentadorias somadas aos programas de assistência social. Nesse contexto, eu também queria entender o porquê de alguns exultarem orgulho fora de medida em morar aqui, enquanto há, na mesma proporção emocional, uma vontade, e até a prática explícita, de morar nas capitais. Políticos, médicos e até professores universitários preferem ter moradia na capital e só virem aqui no interior para cumprir suas obrigações profissionais.

Nas palavras duras e diretas que já ouvi tantas vezes: “quem tem dinheiro, dinheiro mesmo, mora na capital, seu moço!”

Antes de prosseguir explico que êxodo humano por causa da seca não possui explicações naturais e simplistas. Para entender isso, precisei ler e descobrir que a tal “seca do nordeste” é uma de nossas catástrofes sociais e econômicos, como também foi a escravatura, extermínio dos nativos e outros horrores ligados à colonização. Aprendi com a leitura de textos do Dr. Frederico de Castro Neves (historiador e professor da Universidade Federal do Ceará) que não foi a irregularidade de água como a mídia me passou na década de 1980, foi algo pior e cujas consequências sociais estamos hoje enfrentando.

Sobre isso, peço gentilmente que leiam o texto abaixo (pgs. 77-80 retiradas de Neves, FC., 2007. A seca na história do Ceará. Pp. 76-102. In: Rocha, S. (Org.): Uma Nova história do Ceará. Edições Demócrito Rocha.):

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As Origens da Seca

Há registros de escassez de chuvas desde os mais remotos documentos sobre o território onde se localiza o Ceará. As tribos que habitavam essas terras, periodicamente transferiam suas aldeias para áreas mais úmidas ou próximas à orla marítima, muitas vezes provocando conflitos com outras tribos. Os primeiros colonizadores, pouco adaptados ao clima, viam-se em dificuldades quando ousavam atravessar o sertão em épocas de poucas chuvas. Mesmo assim, a ocupação do território se efetivou, especialmente com base na pecuária, que permitia uma certa mobilidade da “produção” durante as secas.

Até meados do século XIX, contudo, a irregularidade de chuvas que caracteriza o sertão não havia significado um problema tão grande para os setores dominantes. Pelo menos, as cidades e as instituições modernas do poder, estruturadas neste mesmo período, estavam a salvo das agruras da seca. As terras úmidas da periferia do semi-árido, abundantes e pouco povoadas, podiam ser ocupadas pelos grupos de sertanejos que perdiam as suas colheitas de subsistência e também pelo gado dos grandes proprietários. O Piauí e o Cariri eram as áreas mais procuradas por essas migrações periódicas. Muitos grandes proprietários possuíam terras nestas áreas como “reserva” para os tempos de escassez, quando o gado – bem mais valioso – poderia estar protegido.

O gado e a produção de subsistência predominavam na ocupação da terra até o início do século XIX. O algodão – uma planta xerófila que se adapta muito bem ao clima do semi-árido – somente veio fazer parte efetiva da produção sertaneja em meados do século. As primeiras tentativas de plantações algodoeiras datam do final do século XVIII, mas é no século seguinte – especialmente durante a Guerra de Secessão nos EUA (1861-1865) – que o algodão passou a fazer parte integrante e permanente da paisagem sertaneja.

Até então, os homens que habitavam essas terras semi-áridas organizavam-se em fazendas de criação em formas de produção em que a escravidão, se não foi inexistente, não teve o mesmo peso econômico e social que em outras áreas. Dividiam o tempo entre a lida com o gado e uma pequena cultura de subsistência, permitida pelos donos das terras, orgulhosos senhores que mantinham laços paternalistas – baseados na reciprocidade e na lealdade pessoal – com “seus moradores”.

A “quarta” – divisão de reses nascidas entre proprietário das terras e vaqueiros na produção de quatro para um – garantia uma possibilidade, embora remota, de ascensão social para os moradores, que cultivavam, especialmente, plantas de ciclo curto – milho, feijão e mandioca – que garantiam uma colheita rápida, apesar de frágil.

Essa agricultura não representava uma produção que conseguisse uma “reprodução ampliada”, um aumento contínuo das potencialidades produtivas que gerasse um excedente comercializável; mas, por vezes, se a regularidade de chuvas permitisse, alcançava uma “reprodução simples”, em que a família poderia subsistir, em sua pobreza, até o ano seguinte para a próxima colheita. A produção agrícola era, portanto, muito pouco integrada às regras do mercado. O objetivo dessa produção de tipo tradicional, pode-se dizer, era conseguir uma “segurança alimentar”, uma garantia de manutenção dos padrões de pobreza vigentes, ligados aos laços paternalistas de submissão, de lealdade e de proteção.

Em casos de uma eventual quebra desse ciclo, seja pela morte de um dos membros da família ou por uma praga na produção, esses laços, baseados também na caridade cristã, poderiam garantir a sobrevivência dos moradores subitamente levados à miséria. De certa forma, era dever do proprietário proteger os “seus” moradores durante um infortúnio.

A falta de chuvas no período regular, no entanto, destruía imediatamente essas colheitas e ameaçava o gado, desfazendo o círculo da produção tradicional. O proprietário da fazenda destacava alguns homens e deslocava seus bois para outras áreas onde o pasto podia ter-se preservado.

Os homens que ficavam tinham duas alternativas: ou migravam para áreas úmidas e resistentes à irregularidade de chuvas, sendo permitida a sua presença provisória por um beneplácito do proprietário, ou eram acolhidos pelo dono das próprias terras em que trabalhavam, muitas vezes habitando os currais abandonados e esperando sobreviver às custas da caridade do “coronel” e de sua esposa.

Essas alternativas eram difíceis, pois implicavam, tanto uma como outra, em um aprofundamento da submissão e da dependência. Ao mesmo tempo, a permanência deste sistema tornava a convivência próxima com a morte ou com a fome um forte elemento nas estruturas da cultura e religião, já que a mortalidade, tanto nos tempos de chuvas regulares quanto em tempos de seca, era (e é) muito alta.

Ao mesmo tempo, os trajetos migratórios eram árduos e pedregosos, cheios de perigos que vinham de várias origens: fome, doenças e crimes. Muitos animais também não agüentavam os rigores da “retirada” e sucumbiam nos caminhos, exaustos e famintos. As estradas, muitas vezes, transformavam-se em cemitérios a céu aberto.

Mas, apesar desse sofrimento, a escassez de chuvas ainda não representava um problema para o Estado brasileiro que se tornou independente em 1822. Era um fator climático localizado, que não afetava sobremaneira as estruturas do poder e da economia.

Essa situação mudou na metade do século XIX. Neste momento, uma série de fatores concorreu para o “fechamento” das terras disponíveis para a “retirada” dos homens e do gado.

A ocupação das terras próximas ao semi-árido por uma agricultura comercial tem dois momentos de intensificação: 1) a valorização das terras como bem econômico, provocada pela Lei de Terras de 1850, que, ao mesmo tempo, retirou das tribos indígenas remanescentes o controle de algumas áreas protegidas por aldeamentos; 2) o impressionante avanço da cultura algodoeira por toda a província do Ceará, motivado pelo súbito aumento de preços no mercado internacional em função da Guerra de Secessão nos EUA.

Esse avanço de uma agricultura comercial, sedentária, que buscava um excedente mercantil, tornou subitamente impossível a “retirada” dos moradores para terras mais úmidas durante os períodos de irregularidade de chuvas, pois elas não estavam mais “disponíveis” para isso, ocupadas agora com a cultura do algodão e valorizadas monetariamente. A proteção paternalista, devido à dimensão da população que a demandava, tornou-se insuficiente, deixando sem alternativas de sobrevivência uma população de centenas de milhares de pessoas.

Esse foi, contudo, um período de chuvas regulares: entre 1845 e 1877, anos em que as mudanças se intensificavam velozmente, os invernos regulares se sucediam, amenizando ou ocultando os efeitos perniciosos que essas transformações iriam ter sobre as populações do sertão. Por isso, o ano de 1877 se tornou um marco na compreensão do problema da seca e o impacto causado pelas cenas que então se desenrolaram fixou-se profundamente na cultura. Neste momento, a irregularidade de chuvas deixa de ser “apenas” uma questão climática para se tornar uma questão social, que a todos afeta e que o Estado brasileiro não poderá ignorar.

De fato, inaugura-se neste instante a seca tal qual a entendemos hoje: miséria, fome, destruição da produção, dispersão da mão-de-obra, invasões às cidades, corrupção, saques... (Neves, 2007).

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Centenas de milhares de pessoas chegaram às capitais. Milhares de pessoas chamadas de “invasores”, “retirantes” e “flagelados”. É esse povo que irá primeiro ser confinado em Campos de Concentração (só em 1932 foram criados sete apenas no Ceará: Crato, Cariús, Quixeramobim, Ipu, Senador Pompeu e dois em Fortaleza). Depois milhares de pessoas foram enviadas para os seringais amazônicos em 1942 (os seringueiros são nordestinos em sua origem). Daí então surgiu o banditismo por uma questão de classe, como canta Chico Science, no cangaço do sertão e nas "favelas" no sudeste.



A Favela (Cnidoscolus phyllacanthus, família Euphorbiaceae) é uma planta do sertão! Em meio aos conflitos de Canudos (1896-1897), os morros ocupados pelos soldados repletos dessa planta xerófila, entre a miséria, cuja semelhança levou nome aos morros no Rio de Janeiro. Claro, sem simplificar demais, lembrem-se que há uma massa de milhares de ex-escravos, pessoas que foram jogadas à própria sorte junto com os nordestinos da "seca", removidos e concentrados nas periferias. Lembrem-se ainda, o “Bota-Abaixo” dos cortiços no centro do Rio de Janeiro realizado pelo prefeito Pereira Passos entre 1902-1906... levou outros milhares e milhares de pessoas para as periferias.

Isso é passado?

Vejamos a seguinte nota recente na Revista IstoÉ:

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O Triste mapa da violência no Brasil

Foram divulgados na terça-feira 30 os dados do mapa da Violência 2010 – Anatomia dos Homicídios no Brasil. Os números fazem parte de uma triste realidade: de 1997 a 2007, o país registrou 512.216 assassinatos. Outra informação alarmante: o risco de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é 130% maior do que o de um jovem branco. O estudo também alerta para a interiorização da violência. No interior dos Estados, as taxas cresceram de 13,5 homicídios (a cada 100 mil habitantes) em 1997 para 18,5 em 2007. Em entrevista à IstoÉ, Júlio Jacobo, autor do estudo explica: “houve uma melhora da eficiência policial nas capitais. Mas o interior cresceu com o fluxo migratório das grandes cidades. Se não forem colocadas barreiras, a tendência natural é de crescimento da violência” (IstoÉ, 7 abril 2010, pg. 27).

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Siga o mesmo raciocínio: as enchentes e os deslizamentos com mortes... são culpa das pessoas que jogam lixo no chão e que “preferem” morar em morros?

Sei que tenho amigos que estão mais preocupados com o futuro do tigre, do panda... da já extinta ararinha azul, pior ainda, se o buraco da camada de ozônio vai aumentar novamente. Mas é por essas e outras histórias e a própria história em si, que não me deixam sorrir, ou ser otimista.

Ou se enfrenta de verdade nossos problemas... ou tudo não passa de cinismo!

É fechar as portas de casa, aumentar o muro, implantar cercas eletrificadas, subir os vidros dos carros e, para quem acredita em seres metafísicos com poderes sobrenaturais, rezar bastante!!!

Nunca foi tão necessário escolhermos: [clique] socialismo ou barbárie?

quinta-feira, 8 de abril de 2010

A Classe Média

8 DE MARÇO DE 2010 - 0H47
Frei Betto: radiografia da classe média num país injusto
A população brasileira é, hoje, de 190 milhões de pessoas, divididas em classes segundo o poder aquisitivo. Pertencem às classes A e B as de renda mensal superior a R$ 4.807 – os ricos do Brasil.

Por Frei Betto, no Correio da Cidadania

R$ 4.807 não é salário de dar tranquilidade financeira a ninguém. O aluguel de um apartamento de dois quartos na capital paulista consome metade desse valor. Mas, dentre os ricos, muitos recebem remunerações astronômicas, além de possuírem patrimônio invejável. Nas grandes empresas de São Paulo, o salário mensal de um diretor varia de R$ 40 mil a R$ 60 mil.

Análise recente da Fundação Getúlio Vargas, divulgada em fevereiro último, revela que integram esse segmento privilegiado apenas 10,42% da população, ou seja, 19,4 milhões de pessoas. Elas concentram em mãos 44% da renda nacional. Muita riqueza para pouca gente.

A classe C, conhecida como média, possui renda mensal de R$ 1.115 a R$ 4.807. Tem crescido nos últimos anos, graças à política econômica do governo Lula. Em 2003 abrangia 37,56% da população, num total de 64,1 milhões de brasileiros. Hoje, inclui 91 milhões – quase metade da população do país (49,22%) – que detêm 46% da renda nacional.

Na classe D – os pobres – estão 43 milhões de pessoas, com renda mensal de R$ 768 a R$ 1.115, obrigadas a dividir apenas 8% da riqueza nacional. E na classe E – os miseráveis, com renda até R$ 768/mês – se encontram 29,9 milhões de brasileiros (16,02% da população), condenados a repartir entre si apenas 2% da renda nacional.

Embora a distribuição de renda no Brasil continue escandalosamente desigual, constata-se que o brasileiro, como diria La Fontaine, começa a ser mais formiga que cigarra. Graças às políticas sociais do governo, como Bolsa Família, aposentadorias e crédito consignado, há um nítido aumento de consumo. Porém, falta ao Bolsa Família encontrar, como frisa o economista Marcelo Néri, a porta de entrada no mercado formal de trabalho.

Dos 91 milhões de brasileiros de classe média, 58,87% têm computador em casa; 57,04% frequentam escolas particulares; 46,25% fazem curso superior; 58,47% habitam casa própria. E um dado interessante: o aumento da renda familiar se deve ao ingresso de maior número de mulheres no mercado de trabalho.

Já foi o tempo em que o homem trabalhava (patrimônio) e a mulher cuidava da casa (matrimônio). De 2003 a 2008, os salários das mulheres cresceram 37%. O dos homens, 24,6%, embora eles continuem a ser melhor remunerados do que elas.

Segundo a Fundação Getúlio Vargas, o governo Lula tirou da pobreza 19,3 milhões de brasileiros e alavancou outros 32 milhões para degraus superiores da escala social, inserindo-os nas classes A, B e C. Desde 2003, foram criados 8,5 milhões de novos empregos formais. É verdade que, a maioria, de baixa remuneração.

No início dos anos 90, de nossas crianças de 7 a 14 anos, 15% estavam fora da escola. Hoje, são menos de 2,5%. O aumento da escolaridade facilita a inserção no mercado de trabalho, apesar de o Brasil padecer de ensino público de má qualidade e particular de alto custo.

Quanto à educação, estão insatisfeitas com a sua qualidade 40% das pessoas com curso superior; 59% daquelas com ensino médio; 63% das com ensino fundamental; e 69% dos semi-escolarizados (cf.
A Classe Média Brasileira, Amaury de Souza e Bolívar Lamounier, SP, Campus, 2010).

A escola faz de conta que ensina, o aluno finge que aprende, os níveis de capacitação profissional e cultural são vergonhosos comparados aos de outros países emergentes. Quem dera que, no Brasil, houvesse tantas livrarias quanto farmácias!

Hoje há mais consumo no país, o que os economistas chamam de forte demanda por bens e serviços. Processo, contudo, ameaçado pela instabilidade no emprego e o crescimento da inadimplência – a classe média tende a gastar mais do que ganha, atraída fortemente pela aquisição de produtos supérfluos que simbolizam ascensão social.

A classe média ascendente aspira a ter seu próprio negócio. Porém, o empreendedorismo no Brasil é travado pela falta de crédito, conhecimento técnico e capacidade de gestão. E demasiadas exigências legais e trabalhistas, somadas à pesada carga tributária, multiplicam as falências de pequenas e médias empresas e dilatam o mercado informal de trabalho.

Embora a classe média detenha em mãos poderoso capital político, ela tem dificuldade de se organizar, de criar redes sociais, estabelecer vínculos de solidariedade. Praticamente só se associa quando se trata de religião. E revela aversão à política, sobretudo devido à corrupção.

Descrente na capacidade de o governo e o Judiciário combaterem a criminalidade e a corrupção, a classe média torna-se vulnerável aos "salvadores da pátria" — figuras caudilhescas que lhe prometam ação enérgica e punições impiedosas. Foi esse o caldo de cultura capaz de fomentar a ascensão de Hitler e Mussolini.

Reduzir a desigualdade social, assegurar educação de qualidade a todos e aumentar o poder de organização e mobilização da sociedade civil, eis os maiores desafios do Brasil atual.

* Frei Betto é escritor, autor de Calendário do Poder (Rocco), entre outros livros.
 
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