sábado, 28 de março de 2009

Crônicas universitárias: graduação



Primeiro dia de aula na Universidade
Numa segunda-feira de março de 1993 acordei por volta das 4:30 da manhã. Havia colocado o despertador para às 5:00, mas não consegui dormir direito... Seria meu primeiro dia de aula na Universidade Federal da Paraíba.

A rotina em casa seguia seu curso normal e meus pais estavam cheios de felicidade. Quer dizer, na verdade, minha mãe só queria saber qual seria meu emprego após me formar, como passei para Ciências Biológicas, ela deduziu e falou para todo mundo que eu iria trabalhar no... IBAMA. Meu pai nunca falou comigo sobre esses assuntos.

Gosto de imaginar que minha irmã, Germana, ficou feliz e mais determinada a tentar o vestibular novamente após me ver conseguir entrar na universidade. Ela passou no vestibular um ano depois de mim, formou-se em Ciências Contábeis, foi aprovada em concurso público e hoje é funcionária efetiva da UFPB. Os dois filhos de Dona Geruza e Seu Antônio que foram para a 'faculdade', como os vizinhos sempre falavam.

Então, lá ia eu pegar dois ônibus para ir, dois para voltar:

Levava comigo um papel que era um tipo de guia das aulas do semestre. A primeira seria de "Biologia Celular" no bloco da Biologia no Centro de Ciências Exatas e da Natureza - CCEN e a segunda seria de "Complemento de Física" na Central de Aulas. As siglas eram difíceis de entender, coisas como "CA bloco A", ou algo assim, serviram para que eu ficasse muito curioso com essa "complexidade" diferente do ensino médio.

Central de Aulas - UFPB.


Ao chegar à UFPB, o edifício que mais me impressionou foi o da Biblioteca Central. Achei-o lindo... e haviam três andares de livros! Se eu gostava da biblioteca municipal apertada lá em Bayeux, o que diria de três andares de livros?! Alguns meses depois, de tanto estudar à noite na Biblioteca após o jantar no Restaurante Universitário, eu e meus amigos demos o apelido a ela de "A Casa do Terror" pelo aspecto sombrio à noite... rsrsrs!!! Isso com muito carinho e respeito.

Biblioteca Central da UFPB:


Não fui de militância, mas esta estava por toda parte, aos gritos e punhos cerrados. Vivi na UFPB o final do governo Itamar Franco e todo o tenebroso período neoliberal de FHC.

Era o início de minha vida na universidade.

À procura de estágios e bolsas

Como não foi diferente do ensino médio, fiz amizade com os "párias" que sentavam no final da sala de aula. Eu gostava de Heavy Metal, mas estava numa fase de ouvir apenas música instrumental influenciado diretamente pelo meu amigo Getúlio Luis de Freitas.

Já escrevi antes como Getúlio foi importante para mim e, quando ingressei na universidade, ele era meu referencial para o que tinha de fazer. Getúlio era bolsista do CNPq e... "porra", como admirava o cara. Até 1992 não havia o Programa de Iniciação Científica - PIBIC/ CNPq e as bolsas eram concedidas diretas de Brasília pela aprovação de projetos. Essa modalidade de bolsas era chamada nos corredores de "bolsa de balcão".

Getúlio estava vinculado ao prof. Rafael Guerra com o projeto de ecologia de oligoquetos (minhocas) e contou-me tudo a respeito do trabalho... e eu decorei cada palavra dele.

Na sala de aula, nos primeiros meses, conheci Alexandre Vasconcellos e Rômulo Romeu da Nóbrega Alves. Assim como eu, eram figuras tenebrosas! O primeiro, vindo do brejo paraibano (Campina Grande), parecia um skinhead, careca, branco, com olhos claros e falava vez, ou outra umas frases idiotas dos Demolay e maçonaria. Alexandre era um porre.

Rômulo era magro e tinha um semblante típico de um retirante nordestino, um estereótipo vivo saído das Vidas Secas de Graciliano Ramos. Ele estava na Residência Universitária por ser de família muito pobre e vir do município de São Mamede, no cariri paraibano, um dos mais secos de todos.

Eram meus amigos, hoje os considero irmãos!

Alexandre e Rômulo no início só falavam em abandonar o curso e voltar para as suas casas no interior da Paraíba. Era difícil viver em João Pessoa, as pessoas na universidade eram frias, outras muito metidas, coisas de comportamento pequeno burguês da "classe média" brasileira.

De meu lado, eu não podia falhar, minha família era pobre demais, meu pai era proletário e uma vida em fábricas não me atraia em nada. Sem contar que, após servir no exército, prestei concurso para Polícia Militar e não passei. Caso contrário, minha vida seria completamente diferente hoje, não é?!

Certa manhã falei assim com meus novos amigos:
-"Temos que conseguir bolsas do CNPq. Eu tenho um amigo, Getúlio, que é bolsista, eu sei como é, vamos correr atrás de estágios!!"

Olhem como eu me comportava?! Estava determinado e fui um tipo de Charlie Brown motivando sua equipe de amigos no time de baseball.

Por coincidência, no momento da confirmação de nossa matrícula, havíamos visto a propaganda ao lado na parede da coordenação: "Laboratório de Primatologia Tropical necessita de estagiários voluntários". Fomos para lá com mais cinco outros de nossa turma. Sim, havia uma bolsa do CNPq disponível, mas, seis meses depois, a selecionada foi nossa amiga Sandra Helena. Após isso, desistimos do estágio com macacos.

... Eu continuava precisando de uma bolsa.

Alexandre, Rômulo e eu, os três que passaram a andar e estudar juntos decidimos: vamos bater de porta em porta até conseguirmos estágio.

A professora Rita Baltazar de Lima havia falado na aula de "Botânica I" que estavam precisando de estagiários no projeto Flora Paraibana. Decidimos começar por lá... e lá permanecemos. A profa. Rita dividia provisoriamente a sala com a profa. Maria Alves de Sousa (carinhosamente chamada de profa. Branca), que estava se aposentando. Alexandre ficou com Rita no projeto sobre Vitaceae (a família das uvas, como ele costumava dizer se referindo a... vinho e embriaguez, claro), eu e Rômulo ficamos com a profa. Branca e as pteridófitas (samambaias).

Em 1993 o CNPq lançou o programa de Bolsas de Iniciação Científica - PIBIC e os boatos eram assim nos corredores: tem muita, muita bolsa! O valor era de R$ 180,00 e foi reajustado para R$ 240,00 em 1994. O salário mínimo na época era de R$ 70,00, ou seja, a bolsa era um pouco mais de três salários mínimos (equivalente hoje a R$ 1.395,00)!!!... Seria minha independência, permanência, sobrevivência na universidade.

Sabemos agora do sucesso que é esse programa. Grande parte dos bolsistas continuou até seu doutoramento e são hoje professores universitários com expressiva produção científica.



Consegui me tornar bolsista em 1994 sob orientação da profa. Branca, Rômulo desistiu da botânica e só se tornou bolsista um ano depois, com orientação do prof. Roberto Sassi (ecologia marinha). Alexandre... não teve sorte de início, na época a profa. Rita só tinha mestrado e não atingiu pontuação suficiente na seleção do PIBIC em 1994. Semanas depois, o prof. Adelmar Bandeira convidou ele para ser bolsista em seu laboratório e estudar cupins. Ali começava uma das histórias mais importantes de amizade e parceria profissional da vida de Adelmar. Hoje em dia ele fala para todo mundo que Alexandre foi o seu melhor aluno em todos os tempos.

Moabe Pina da Silva, calouro de 1994.1 se tornou um de nossos grandes amigos. Moabe fazia muito bem nosso estilo, era feio, tímido e nerd. Convidamos ele para ingressar no Centro Acadêmico de Biologia e ele também se tornou bolsista PIBIC com peteridófitas sob orientação da professora Branca.

Na metade de nossa graduação, todos nós éramos bolsistas! Segundo uma palestra da Coordenadora Geral de Pesquisa, Ciência e Tecnologia
, profa. Maria José Lima da Silva, a UFPB possuía mais de 600 bolsas e se tornara exemplar no CNPq pelo desempenho do PIBIC.

Bem, eu desisti da Botânica um ano e meio depois. Não tinha vocação para estudar plantas. Todos meus amigos estavam na zoologia, até Moabe passou a estudar cupins em 1996. Ademais, eu queria era ser um tipo de David Attenborough, defender os animais e tal. Após assistir as aulas de Evolução com o prof. Martin Lindsey Christoffersen, não perdi tempo e mudei do térreo do Departamento de Sistemática e Ecologia - DSE para o primeiro andar da Zoologia.

Pronto... ali no Laboratório de Filogenia dos Metazoa fiz minha monografia de bacharelado, dissertação de mestrado e tese de doutorado:


O Centro Acadêmico

Alexandre foi o responsável em convencer-me à integrar o Centro Acadêmico de Biologia. Chegamos lá e achamos um absurdo, porque estava fechado, sujo e quase sem nada. Conseguimos uma máquina de escrever elétrica com a coordenação (estavam mudando tudo para computadores 486, uma revolução!) e um arquivo velho lá no patrimônio. Limpamos e pintamos tudo. Levei um ventilador para lá e tínhamos até um toca-fitas que incomodava muito as aulas no auditório do Departamento de Biologia Molecular - DBM que ficava ao lado.

Certa vez o professor de Biofísica passou lá e pediu para desligar o som. Alguns minutos depois veio Rogério que falou: "-Gostei de fazer a prova escutando Pantera (Cowboys from Hell), valeu!!!" rsrsrs!!!

Nossa postura política no C.A.: sem partidos políticos! Um desastre!

Estávamos errados, mas achávamos certo, típico da idade. Víamos os esquerdistas e direitistas no DCE e queríamos ser diferentes, concentrar nossas ações no curso de Biologia. Bem, mas nós demos continuidade ao trabalho da gestão anterior e denunciamos o lixo e o desmatamento nos pedaços de Mata Atlântica da universidade, saimos no jornal da UFPB, tivemos audiência com o reitor e depois com o prefeito universitário. Este eu lembro bem, era um Físico e falou assim para nós:

"-Estou com vocês, acho as árvores bonitinhas, mas... precisamos de estacionamento. A universidade está crescendo, serão árvores, ou carros, entendem?! Por mim, cortava tudo, comprava e plantava árvores de plástico. Li algo assim em algum lugar, árvores de plástico são perfeitas".

Saímos da prefeitura com uma certeza: nosso relatório sobre o lixo da universidade seria jogado... no próprio lixo.

Organizamos calouradas, promovemos o voleibol da sexta à tarde (com 5 L de vinho por conta do C.A.... rsrsrs!!!) e coordenamos, junto com o DCE, as carteirinhas da UNE da Biologia.

Quando passamos a diretoria do C.A. de Biologia, achávamos que estávamos no topo da popularidade... eita ilusão! A turma que nos substituiu falou que o C.A. vivia trancado, estava vazio, sem móveis e sujo... rsrsrs!!! Vi o filme se repetir sem a menor criatividade!

Política e muita greve

Com o decorrer do tempo na universidade só pensava em uma coisa: tornar-me um professor-pesquisador de renome internacional. Tive minhas crises feias, porque deveria decidir qual seria ramo da biologia de minha pós-graduação. O que eu iria fazer depois de terminar a graduação?

Há alguns anos atrás quando li a biografia de Charles Darwin (Desmond e Moore, 2001) fiquei fascinado pelo lado humano e ordinário dele como aluno de graduação. No meio de seu curso para o fim, Darwin passou por crises de definição pelo caminho nas ciências naturais. Talvez muitas outras pessoas compartilhem com ele e comigo uma experiência semelhante em suas graduações.

Entre o bate-papo rotineiro com meus amigos, era "pesquisa para cá, vou revolucionar isso para lá". Certa vez falei para Alexandre: "A história dos Pentastomida (parasitas que eu estava estudando) será contada antes e depois de mim".

Perdoem a ingenuidade dos meus 20 anos! Embora queria muito que meus alunos de hoje sonhassem tão alto quanto possível.

Fernando Henrique Cardoso foi contra concursos, professores se aposentaram em massa com receio de perderem seus direitos trabalhistas, os salários e as bolsas foram congeladas... por oito anos. Não deu outra, foi luta e mais luta de classe.

Passei por várias greves, sobretudo dos funcionários. Era sempre radical, carro de som dentro da universidade, corte de luz elétrica e água, piquetes e correntes no portão principal.

Vias de regra deixavam alunos entrar, desde que não fosse para assistir aulas. Como eu ia sempre para o laboratório, tive poucos problemas. Quando encontrava uma turma furiosa e mais radical, pulava a cerca em outro ponto do campus... e seguia para o laboratório e estágio do PIBIC.

Paralisação dos funcionários da UFPB em 2007 (a luta continua companheiros!):


Evandro do Nascimento Silva (hoje professor da UEFS) era um dos alunos mais politizados da biologia que conheci em minha vida. Ele contou sua história de menino pardo, pobre e da luta em passeatas contra ditadura e depois contra os governos neoliberais. Evandro era gente boa... eu... bem, queria sair da pobreza de todo jeito. Repetia para mim como um mantra: "eu não posso falhar". Sei que isso não justifica minha ausência em passeatas, mas meu trabalho no laboratório exigia demais de mim.

Hoje em dia reconheço todo esforço e dificuldades que enfrentamos naquela década sob o julgo de um presidente da direita (PSDB). Depois que me tornei professor vi meu salário ser esmagado por um governador desse mesmo partido, Lúcio Alcântara, que, assim como FHC, era indiferente a manifestações e greves.

Então, sempre que tenho oportunidade e nas eleições, hoje estou nas ruas e sou militante de esquerda. Tenho orgulho de ser do Partido Comunista do Brasil - PCdoB. Antes tarde do que nunca por um mundo melhor!!!

A luta de classe não pode ser evitada sempre que necessária! Como bem disse Maquiavel (1513): "As guerras não podem ser evitadas e quando adiadas, só trazem benefícios para o inimigo".

Viver dentro da universidade

Dormi muitas noites na UFPB. Por morar em Bayeux-PB, caso perdesse o ônibus das 22:00 em frente ao Campus, não tinha como pegar o último ônibus para minha cidade próximo à rodoviária.

Foi na UFPB que aprendi a usar computador e vi o milagre da internet pela primeira vez em 1997, quando aluno do mestrado!!! Dormi no laboratório para aprender isso.

Se tinha uma festa (calourada) e os amigos quase que me amarrassem para eu ficar, ou se quisesse enfiar a cara nos estudos durante a madrugada... Comprava ficha telefônica e ligava para casa e avisava minha mãe.

Em muitos momentos passei a viver dentro da universidade!

A minha maior permanência nas noites no laboratório foi por causa de minha monografia. Não possuía computador em casa, era um luxo máximo naquela época. Não esqueço que no momento de finalização do trabalho monográfico, entrei na sexta-feira, só sai na segunda pela manhã. Levei sandwich, biscoito. A fome foi tão grande no domingo à tarde que eu e um amigo que estava lá, Marcos Antônio, fritamos um ovo e sardinhas na bandeja de dissecação de mamíferos ao fogo de Bico de Bunsen.

Em uma terça-feira de 1996 tirei 10,0 em minha monografia sob os aplausos do auditório do DSE lotado. Publiquei os resultados dessa pesquisa em 1999 na melhor revista da área, The Journal of Parasitology - Estados Unidos. Até os dias de hoje, esse trabalho continua sendo um dos meus melhores, o mais citado e o mais aceito internacionalmente. É hoje considerado um marco da evolução dos pentastomídeos. A história desses animais não foi contada antes e depois de mim como brincava com Alexandre... A história evolutiva desses animais foi contada por mim.

A magia da universidade

A vida na universidade é um encanto. Certo dia, minha irmã me ensinou a rasgar o jeans com uma pedra para ficar desgastada e natural... para ficar punk. Amei os farrapos que ficou. Minha mãe arregalou os olhos, as pessoas olhavam atravessadas no ônibus... mas, era ultrapassar os portões do Campus... e era como se eu fosse o mais ordinário entre tantos e tantos outros.

Ficar na frente da Bibliotea Central, vez ou outra, podia-se ver o professor Arturo Gouveia do curso de Letras. Ele tinha metade do bigode raspado, a outra não; uma sobrancelha de um lado, o outro olho pelado; um pé com uma sandália, o outro descalço. Nunca vi algo tão diferente andando... Escrevo, diferente para um professor com doutorado e autor de livros ótimos, como "O Mal Absoluto":


Claro, é um exagero, a maioria dos professores, funcionários e alunos era bem "normal". Entretanto, estávamos tão absorvidos nos estudos e estágios que não nos preocupávamos com o visual, ou jeito de ninguém... Os originais na universidade são admirados, mesmo com todas as suas diferenças.

Amava a liberdade na universidade nos tempos de minha graduação. Voltei a escutar Heavy Metal, comprei camisetas de bandas, furei a orelha, o cabelo cresceu... eu fiquei pra lá de feliz! Claro, que expressava essa minha "felicidade" com uma baita cara feia, muito feia... Fazia o tipo do "metálico (não gostava do termo 'metaleiro') com cara de mal"... Quem me conhecia sabe que era só tipo... e bem exagerado!

Na música, os anos 1990 foram todos repletos por bandas de... 1980!!! Eu não sabia que esse fenômeno continuaria na década seguinte de 2000! Será que continuará em 2010?! Mesmo assim, enquanto meus dias de graduação passavam, acompanhei os melhores discos do Sepultura e o surgir do Angra. Na europa surgiram novos estilos que me fascinaram como Death Metal Melódico e o Gothic Metal. Bandas hoje que fazem parte do mainstream europeu eram todas underground no início da década de 1990. Paradise Lost, Anathema, Amorphis, Sentenced, In Flames, Dark Tranquillity, só para citar minhas preferidas entre tantas outras que surgiram nessa época. O mundo transpirava os Estados Unidos com seu movimento Grunge nas músicas do Nirvana, Soundgarden e Pearl Jam... depois veio o fenômeno do Pantera contra todo esse modismo, voltando as influências do thrash metal da década de... 1980!!! rsrsrs!!!

Em dezembro de 1996 passei em quarto lugar na seleção do mestrado em Ciências Biológicas (Zoologia). Estava na lista dos bolsistas da CAPES e muito aliviado por isso. Poucas pessoas sabem, mas Alexandre, penúltimo lugar na seleção, já havia casado, tinha uma linda filha. Não deu outra, dividi minha bolsa de mestrado com ele por cerca de seis meses e acho que ainda hoje ele me deve uma grana, não Alexandre?! rsrsrs!!! Amigo é para todo tempo, na ciência e na vida!

Essa não é toda história, faltam tantos detalhes, tantas pessoas que não citei e peço perdão por toda essa simplificação. Por falar em história, o mestrado é outra... a vida na pós-graduação e os sonhos mais elevados.

Continua...

sexta-feira, 27 de março de 2009

Crônicas universitárias: apresentação

Em 1993 ingressei no mundo universitário para nunca mais deixá-lo. As realidades de minha vida são todas acadêmicas.

Mais do que um relato auto-biográfico, espero registrar em quatro textos os principais eventos históricos que vivi e vivo na universidade pública por quase duas décadas. De calouro a professor, dos livros lidos até a produção do conhecimento, há muito o que escrever: comportamento humano, as fantasias e os discursos; ser politicamente correto e viver mergulhado em preconceitos e discriminação; de aluno pobre da periferia até professor da classe média; os ídolos acadêmicos e o encontro com autoridades científicas.

Dividirei os textos do mesmo jeito que planejei furar minha orelha esquerda a cada passo importante na universidade: graduação, mestrado e doutorado (isso explica, porque usava três brincos!!! rsrsrs!!!).

O último texto dessa tetralogia abordará o meu ingresso na carreira docente, meu primeiro estágio de pós-doutorado e os fatos mais recentes que passei.

Novamente, não esperem ler minha história particular, até porque sou um homem bastante comum, cuja trajetória está repetida em muitas outras vidas a nossa volta. Haverá temas como o surgimento do programa de Bolsas de Iniciação Científica - PBIC do CNPq, as greves de funcionários e professores, as relações humanas entre professores, funcionários e alunos, enfim a vida na universidade pública brasileira. Coisas muito fascinantes escrevo de passagem.

Aos meus amigos de longas datas e leitores deste Blog espero que se divirtam com os textos recheados de nostalgias e atualidades de nossas vidas.

Que as crônicas se iniciem!

terça-feira, 24 de março de 2009

Neurose não tem cura: IF, FH e Qualis novamente

A maioria dos cientistas considera o novo processo simplificado de revisão como 'uma melhoria significativa'.

No post "Neurose acadêmica" escrevi sobre minha náusea diária de ter que me preocupar com índices como IF, Qualis das revistas onde publico e meu FH em relação às citações.

Já reli o texto algumas vezes à procura de consertar erros e entender eu mesmo minha neurose.

As duas coisas que reclamo naquele post têm soluções. No caso da URCA, simples, tenho que trabalhar com os poucos companheiros que sabem e sofrem comigo e continuar a vida. Tentar um concurso para outra universidade melhor não é uma alternativa exclusiva minha, mas sim uma possibilidade real para todos (como exemplifiquei citando os meus amigos que hoje estão em outras IES).

Eu não possuo esse objetivo tão claramente. Diversas vezes em algumas reuniões expressei meu amor ao meu primeiro emprego... e primeiro amor vocês sabem como é! Deixo escrito aqui para a posteridade que eu fui recebido com muito respeito e carinho na URCA. Houve a cerimônia de recepção com o Governador do Estado do Ceará, outra cerimônia com a Magnífica Reitora Violeta Arraes e na minha primeira reunião de Departamento fui saudado pelo prof. Cunha com aplausos de todo o colegiado! Ao retornar para minhas obrigações do doutorado na UFPB, também fui elogiado por causa do sucesso no concurso pelos amigos, meu orientador e a coordenadora, Ierecê Lucena. Eu amei cada um desses momentos e se um dia sair da URCA será de coração partido.

Em 2002, após passar no concurso da URCA, essa foi a nota no quadro de aviso do Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas (Zoologia) - PPGCB, que a coordenadora, profa. Ierecê Lucena, escreveu para mim.

Foi também na região do Cariri que eu me reencontrei com a pesquisa de campo. Os dados que obtive na Chapada do Araripe e Caatinga levaram-me a publicar importantes trabalhos... Em palavras mais diretas, eu fiz minha carreira científica no Cariri cearense.

Eu em 2005 no município de Nova Olinda - CE, às margens de um açude coletando um espécime de Iguana iguana (lagarto conhecido na região como 'camaleão').

No caso dos índices de minha neurose, há várias opiniões que já li, ou ouvi. Três possibilidades: (1) entrar no jogo e conseguir os maiores scores publicando apenas em revistas internacionais indexadas no ISI; (2) investir nas revistas nacionais para que elas cresçam em qualidade suficiente, consigam bons IFs no JCR e integrem no ISI; (3) ignorar por completo essa realidade.

Antes de explorar essas possibilidades, vou tentar esboçar um exemplo hipotético sobre FH.

Para ter um alto FH basta fazer o seguinte: publicar oito artigos indexados no ISI. No primeiro ano você publica dois artigos, no segundo um terceiro e cita os dois primeiros, no terceiro artigo você cita os anteriores e assim por diante (mais ou menos assim):

Artigo a b - FH = 0
Artigo c - a1, b1 - FH = 1
Artigo d - a2, b2, c1 - FH = 2
Artigo e - a3, b3, c2, d1 - FH = 3
Artigo f - a4, b4, c3, d2, e1 - FH = 4
Artigo g - a5, b5, c4, d3, e2, f1 - FH = 5
Artigo h - a6, b6, c5, d4, e3, f2 - FH = 6

Vejam bem, nesse exemplo grosseiro, com uma quantidade ínfima de artigos e apenas auto-citação, obtém-se um FH acima de 5. Ressalto com repetição para ser chato, apenas com auto-citação, ou seja, a pesquisa realizada não teve influência alguma além do próprio mundo particular do pesquisador hipotético!!!

Sabe-se hoje que além das auto-citações, amigos e orientados fazem uma corrente de citações cruzadas com objetivos semelhantes à auto-citação (ver mais detalhes e exemplos em Kellner e Ponciano, 2008).

Há várias estratégias para se ter um FH alto sem necessariamente ser um pesquisador influente no mundo. Vaidade é o óleo da moenda em muitos setores da academia. Se as penas dos pavões são feitas de IF e FH... muitos farão de tudo para tê-las... farão de tudo!!!

Das três possibilidades descritas acima, tenho amigos que defendem cada uma delas. Até mesmo a terceira que parece absurda, há sim uma amiga minha que diz não entrar em sistema algum e faz questão de publicar em português e nas revistas locais 'Qualis Cs'. Não sei se ela faz meditação, ou algum exercício contra neurose, porque tenho certeza que a métrica científica bate na porta do seu currículo todos os dias.

Meu orientador, Martin Lindsey Christoffersen, certa vez me falou que ele não se importa com nenhum aspecto da métrica acadêmica. Segundo ele o importante é publicar e fazer uma divulgação efetiva de cada artigo e suas idéias centrais. Todos na UFPB conhecem o volume mensal da correspondência de Martin. Ele envia cópias e separatas de seus trabalhos para todos os pesquisadores do mundo que estejam ligados de alguma forma com as áreas dos artigos. Martin faz isso também por e-mail com o advento dos arquivos em PDF. Mesmo assim, em períodos de baixa produtividade, ele quase perdeu sua bolsa de produtividade do CNPq.

Laboratório de Filogenia dos Metazoa - DSE/CCEN/ UFPB.

Sala de estudo dos alunos de pós-graduação do Laboratório de Filogenia dos Metazoa - DSE/CCEN/ UFPB.

Em agosto do ano passado fiz uma viagem à Brasília e, por acaso, conversei um tempo com Alexander Kellner (UFRJ) sobre FH. Nessa época ele estava finalizando um artigo exatamente sobre isso e pediu minha opinião no manuscrito (leia Kellner e Ponciano, 2008). O posicionamento de Kellner é mais ou menos a segunda possibilidade apresentada anteriormente. Concordo com ele que uma medida para dar suporte aos pesquisadores brasileiros é ter investimentos contínuos e efetivos às revistas nacionais de qualidade e tradição. Hoje as verbas alocadas do CNPq e CAPES são importantes, mas são insuficientes. Kellner ainda defende que sejam incorporados ao corpo editorial de nossas revistas, revisores de língua inglesa no intuito de melhorar a qualidade dos artigos publicados nessa língua.

Em 2008 periódicos nacionais como o Brazilian Journal of Biology e a Revista Brasileira de Zoologia ingressaram no ISI. Isso trouxe um novo status para essas revistas e para quem publica nelas. Por exemplo, no SCOPUS meu FH saiu de 1 para 2, o que deve também acontecer em breve no ISI com outros de meus artigos agora incluídos nessa base.

Inspirados no seriado 24 Horas, em dezembro de 2007, reunimos parte do Grupo de Biologia Comparada em João Pessoa-PB com um objetivo de fundarmos a Unidade de Combate e Terrorismo para Publicação - UCTP. Esta é composta por Gindomar Gomes Santana (Herpetologia - UFPB), Washington Luis Vieira (Herpetologia - UFPB), Rômulo Romeu da Nóbrega Alves (Etnozoologia - UEPB), Alexandre Vasconcellos (Ecologia de Termites - UFRN) e eu (parasitologia de animais silvestres - URCA). Todos nós nos sentimos os Jack Bauer da ciência, embora um pouco de terroristas também... rsrsrs!!! Apesar de nosso senso de humor estar em alta, levamos nossos compromissos a sério. Hoje temos um saldo de no mínimo cinco artigos publicados por ano em bons periódicos, dois de nós são bolsistas de produtividade (Alexandre do CNPq e eu da FUNCAP), temos vários projetos aprovados (CNPq e FUNCAP) e Rômulo é hoje o maior FH entre nós (FH 6), seguido por Alexandre (FH 3).

Em minha opinião não há como fugir ao sistema, ele existe e ignorá-lo só piora a aceitação da realidade. Por isso, não farei Yoga para exercitar a fleuma contra os IFs, FHs e Qualis da vida. Vou continuar conversando sobre essas coisas por um bom tempo no msn, e-mails, Orkut e durante minha hora do café.

Se as hipóteses que publiquei estiverem corretas, espero tê-las divulgado o suficiente para serem reconhecidas no futuro. As que ainda andam no plano das idéias, no meio dos projetos em notebook, devo ter o mesmo zelo e, claro, tentar publicá-las em boas revistas.

Afinal, neuroses podem ser tratadas e controladas, mas não há cura definitiva. É para vida toda!!!

Não, natureza cruel, POR QUÊ?

Leiam:

http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v16n2/13.pdf

http://www.scielo.br/pdf/aabc/v80n4/a16v80n4.pdf

domingo, 22 de março de 2009

O quebra-cabeça resolvido

Nossa história em segundos:


sábado, 21 de março de 2009

Nós somos filhos da evolução!!!

Sensacional!!!

A Beata Beat Cult

Por falar em produção acadêmica de professores da Universidade Regional do Cariri- URCA, segue o Cordel Maria do Araújo e Seu Lugar na História – ou A Beata Beat Cult de autoria da profa. Dra. Salete Maria (Direito) e interpretado por Socorro Lira:


Um ótimo exemplo de que o mundo não é apenas feito de IF, FH, ISI e Qualis!!!

Parabéns, Salete!!!

Acessem:
http://www.socorrolira.com.br/pages.php?page=recitalcordel
http://www.sescsp.org.br/sesc/programa_new/mostra_detalhe.cfm?programacao_id=147301

quarta-feira, 18 de março de 2009

Neurose acadêmica

Eu não sei se posso me considerar um acadêmico "old school", mas é verdade que vi muito de minha realidade mudar nessas duas décadas 1990-2000. A produção acadêmica era uma necessidade e diferente da atual neurose que vivemos nos dias de hoje.

Vi o fim da era na qual poderíamos passar anos trabalhando em uma hipótese e depois publicar os resultados em um artigo que separasse as águas e causasse uma revolução científica. Em outras palavras, eu ainda vivi nos dias em que havia um objetivo acadêmico concreto, o julgamento de nossa realização estava na profundidade dos resultados publicados, mesmo que em um único artigo, ou livro.

Mais ou menos do meio da década de 1990 em diante (desculpem-me a imprecisão), os principais órgãos de fomento nacionais CNPq e CAPES, ao tempo em que aumentavam o investimento em pesquisa, passaram por profundas modificações nos procedimentos de concessão e avaliação da produção científica. Termos como "ilhas de competência" foram publicados para destacar os grupos de pesquisa mais produtivos. Logo depois surgiu o sistema Qualis de avaliação da produtividade acadêmica dos cursos de pós-graduação.

Isso não foi uma exclusividade brasileira, o mundo estava mudando da mesma forma. Sugiram os portais de indexação como o Institute of Scientific Information - ISI e o Journal Citation Reports - JCR, os periódicos foram medidos (assim como seus autores), sobretudo, de acordo com Fatores de Impacto (IF - do inglês Impact Factor). Recentemente foi incorporada a essa métrica acadêmica o Fator H - FH, ou
h-index (Hirsch, JE., 2005), que leva em consideração tanto a qualidade de onde se publica (artigos indexados no ISI, ou no SCOPUS), quanto ao número médio de citações por artigo publicado.


Nos corredores de hoje das nossas universidades um pesquisador sem h-index é discriminado pelos seus colegas. Da mesma forma entre os que possuem esse índice de citações com scores baixos, por exemplo, eu atualmente tenho 1 no ISI e 2 no SCOPUS, é "metricamente" mais fraco do que aqueles com scores acima de 5.

Tenho diversos amigos que só falam nisso hoje em dia. Na hora do café, no msn, em e-mails, é IF pra cá, FH pra lá, sem contar o estranho e às vezes incompreensível sistema Qualis da CAPES que está sempre presente (Qualis A1, B5, C, etc.).

Claro, tudo isso se traduz em uma língua básica: publicar em massa!!! Um artigo com IF acima de 1.0 por mês de preferência!

Quero deixar claro que este texto não é uma declaração em defesa de quem não produz, ou publica trabalhos medíocres, grande parte das reclamações desse fenômeno de métrica acadêmica vem de quem não consegue entrar nele, ou dos que não se destacam. Não é essa a minha preocupação.

Devido a institucionalização da ciência a partir da revolução industrial e a necessidade de distribuição dos recursos (limitados), deve-se ter uma forma de avaliar o desempenho e mesmo o retorno para a sociedade da atuação dos grupos de pesquisa. Todavia, enquanto pesquisador sinto uma tristeza profunda de não participar de discussões apaixonadas em meu dia-a-dia, estar com pessoas empenhadas em encontrar respostas para suas hipóteses. A maioria está tão neurótica em manter ou ampliar seu FH, que parece nem se importar com os artigos que publicam... é quase um "vale tudo curricular".

Não citarei exemplos por motivos óbvios, mas se você vive pelos corredores dos mestrados e doutorados, sabe do que estou escrevendo.

É angustiante, depressiva e neurótica a forma como encaramos o dia-a-dia. Além do mais, pesquisas demonstraram que individualmente nós não produziremos muito de forma efetiva, ou seja, com muito empenho e toda uma carreira, teremos uma, ou no máximo duas hipóteses bem estabelecidas. Nenhum humano revolucionou a si próprio ano após ano, artigo após artigo.

Vamos aos exemplos populares como a Evolução por Seleção Natural, O Capital e o Materialismo Histórico, a Relatividade, a estrutura do DNA, etc., São contribuições importantíssimas para a humanidade e cada qual custou uma vida acadêmica inteira.

Mantendo as diferenças entre as realidades vividas por Darwin, Marx, Einstein, Watson e Crick, todos eles não possuíam referências métricas curriculares tão estranhas como o FH de hoje.

Na atualidade, em meio a massa dos profissionais acadêmicos, publica-se muito, mas alguns currículos parecem mais ser uma colcha de retalhos, ou mesmo um verdadeiro "samba de doido", do que um empenho na busca de respostas.

Eu não acredito que a maioria esteja em uma busca vã pela fama, como em um reality show. De minha parte, meu trabalho só faz sentido se eu estiver envolvido com paixão, curiosidade, dedicação e amor à ciência. Um desejo de deixar uma contribuição verdadeira para o conhecimento humano sobre nosso planeta.

Na universidade onde trabalho (Universidade Regional do Cariri - URCA) parte de meus companheiros de trabalho não conversam sobre produção científica. Parece que esse mundo de IF, FH e Qualis também não é conhecido pelos alunos da graduação, mesmo os bolsistas de Iniciação Científica e os mestrandos de nosso único mestrado. Alguns professores que sabem dessas exigências preferem também não comentar, porque não possuem FH e/ou não publicaram um único artigo em periódico nacional qualificado na Qualis.

Esse silêncio ora do desconhecimento, ora da dissimulação, amplia minha angústia.

Sabem, certa vez em uma aula de Biogeografia quando cursava doutorado, o prof. José Maria Cardoso da Silva (na época com dois artigos publicados na Nature) falou abertamente: "um certo desejo de ambição e a ciência andam juntos, quem não tiver isso não deveria percorrer esses caminhos".

Na verdade estávamos em uma grande discussão sobre comportamento de cientistas e uma amiga do mestrado, que também estava cursando a disciplina, falava em "amor", "carinho", "humildade" e que não iria se entregar a esse modelo de competição acadêmica.

Ela ficou sozinha... todos nós concordamos com o professor e até gostamos. Hoje diria que estávamos querendo ser, cada um ao seu modo, algo como Dr. House misturado com Dexter na ciência... o que é igual a um desastre em termos de relações humanas! Tive treinamento para me absorver nas hipóteses e ser indiferente, um Dr. House da Zoologia!!! rsrsrs!!!

Entretanto, meu exemplo de cientista era outro. Quando criança adorava assistir ao seriado chamado "O Mundo Animal" (Life on Earth, 1979), apresentado por nada menos do que David Attenborough. Meu pai trabalhava o dia inteiro na fábrica e minha mãe também trabalhava como costureira. Quando vivíamos em Abreu e Lima - PE, lembro de ficar sozinho em casa por volta dos seis anos de idade assistindo TV. Na abertura do Mundo Animal as silhuetas das zebras, girafas e elefantes contra o céu vermelho eram lindas. Acho que a música era do Vangelis (quem lembrar dos detalhes, por favor escreva um comentário)... Eu lembro de David Attenborough falando sobre os animais e no final de cada programa sempre ressaltando a necessidade de preservá-los. Isso foi marcante em minha vida, porque quando criança falava que seria um "cientista" quando crescesse... Entre meus primeiros ídolos, estava David Attenborough!

Não é uma questão de "predestinação", ou algo assim. No momento oportuno e nas condições favoráveis, tornei-me zoólogo... de carteirinha, diplomado e tudo mais. Nunca imaginei que ser um tipo de David Attenborough hoje teria insônia e surtos de ansiedade por causa de IFs e FHs.

Esse mundo é o que me dá prazer de estar vivo, o que me ergue e faz minhas pernas se moverem. Escrevo sobre motivação pessoal, é evidente que possuo outras, como o amor pelos meus filhos e diretrizes de meu partido político (PCdoB). Todavia, o centro do que eu sou, na parte exclusivamente pessoal, está lá uma pedra sólida, bruta, pesada, causa de meus sonhos e amor pela existência: a ciência.

Se me permitem uma comparação a grosso modo, é como ser um músico e amar um estilo musical peculiar como Heavy Metal. Tenho vários álbuns de bandas brasileiras, umas muitíssimo talentosas como o Malefactor (Salvador-Bahia), mas que continuam na cena underground (se é que posso chamar assim). Viver de "música extrema" é uma tarefa quase impossível no Brasil, apenas nomes como Sepultura e Angra conseguiram... e com muito esforço. Em minha opinião, o mesmo está para ciência! Na verdade, a maioria dos pesquisadores brasileiros "ganham a vida" como professores em Instituições de Ensino Superior (IES)... é nosso "underground". Somos professores, mas a maioria tenta se realizar através da pesquisa científica.

Ressalto que não é a obrigação de realizar uma palestra, ou escrever para um jornal de notícias e divulgar os resultados à sociedade. Alguns de meus amigos têm jornadas de trabalho docente difíceis de conciliar com suas pesquisas. Pior ainda é caso alguém com esses sonhos estar em uma IES sem vocação, ou mesmo objetivos científicos, aí o bicho pega mesmo.

Há uma clara neurose entre os pesquisadores no mundo inteiro.

De um lado está a métrica acadêmica dos índices e periódicos de impacto. Nesse mundo nós parecemos máquinas de produção em série de artigos científicos. Publicar, publicar, publicar... Chega-se ao absurdo de publicar apenas por publicar... qualquer coisa! Por outro lado, para agravar essa situação, poderá haver a ausência local da necessidade científica. É saber que o mundo da ciência atual é difícil de se destacar e ainda olhar dos lados e ver seus pares ignorarem e até desconhecerem isso, ou fingirem abertamente.

Eu tenho esse problema conjugado onde trabalho. Na sala de aula da graduação, quem ensina "metodologia da ciência" não fala em IF, FH, ISI, Qualis... e meu horror é maior em saber que os alunos da Biologia desconhecem qualquer filosofia da ciência e mesmo nomes como Karl Popper e Thomas Kuhn.

Alguns professores já falaram com todas as palavras para mim: "eu quero é ganhar dinheiro, não entendo o que você está reclamando". Sempre que isso acontece vem a mente a música de Zeca Baleiro (O Silêncio):
Agora só me falta aprender o silêncio.

Imaginem agora, eu na crise com as regras de produção quase que industriais de artigos e carreiras, mergulhado em um mundo que é indiferente a isso?!!

Eu tenho neurose acadêmica aguda, agravada mais ainda pelo silêncio imposto a minha volta na URCA. Muitos nem sabem disso! Sou tão ligado aos meus sonhos acadêmicos que nem sei como consigo ainda fazer amizades. Não deixo de pensar nisso um só minuto, não há ação minha sem essa motivação... embora a música do Zeca Baleiro não pare de tocar em minha cabeça...
Agora só me falta aprender o silêncio.

Do lado da métrica acadêmica, cresce no mundo à crítica ao sistema dos índices. Existem sérias restrições se toda essa pompa de índices pode realmente medir o valor e impacto de um trabalho inovador. Uma teoria, ou inovação científica pode vir em forma de livro, como aconteceu diversas vezes antes em nossa história. O desafio é encontrar tempo para produzir na ciência trabalhos extensos e profundos sem ser discriminado por publicar menos por ano.

Do lado da atuação profissional, tenho sempre que possível calorosas discussões entre meu grupo de amigos. Somos multidisciplinares, zoólogos, ecólogos, físicos, químicos, farmacêuticos, paleontólogos e compomos um grupo de pesquisa intitulado
Biologia Comparada. Espalhados pelo Brasil, vez por outra conseguimos reunir a maioria de nós em João Pessoa - PB. Quando não, tentamos realizar eventos em nossas IES com palestras e convidamos um ao outro. Por exemplo, a última Semana de Ciências da URCA em dezembro de 2008. Nessa época consegui reunir pesquisadores do grupo Biologia Comparada da Unesp (Luciano Alves dos Anjos), UEPB (Rômulo da Nóbrega Alves) e URCA (faltou Alexandre Vasconcellos da UFRN). Além das palestras, conseguimos acertar objetivos científicos que são a causa de vários de nossos artigos em elaboração hoje.

A hora do café sempre foi interessante e hoje em dia converso muito com amigos da História (Darlan Reis - URCA) e Física (Wilson Freire - UFCG). Além das barrigas que crescem com o sedentarismo, o papo sobre ciência e política é importante para mim.

Infelizmente vários amigos meus deixaram a URCA e foram para outras IES. Plínio Delatorre (atual UFPB), Ricardo Lima (atual UFMA), Wilson Freire (atual UFCG), Bruno Anderson (atual UFAL) e Alexandre Magno (atual UVA-Sobral)... Eles fazem falta na hora do café. Sem contar os vários outros professores que, mesmo sem contato pessoal, eram importantes para a produção científica na URCA.

Nesses momentos eu me pego em pensamentos: "
talvez seja o mais correto é fazer o mesmo e ir embora daqui? Por outro lado, a URCA, por ser pequena, tenha a característica de favorecer o surgimento e consolidação de grupos de pesquisa sem os vícios de IES decanas? Partir, ou ficar? Procurar emprego em uma IES maior, ou trabalhar na construção da qual estou?"

Minhas preocupações, dores de cabeça, decisões que não consigo tomar com facilidade e neurose que permeia o meu silêncio.

Terça-feira passada (dia 17) não deu para chegar em tempo ao trabalho na URCA, faltei o serviço à noite... putz! Estava em meu carro e o horizonte era plúmbeo com raios, trovões e chuva. Escutava uma música chamada Redshfit (da banda Paradise Lost, 2005)... Entrei em êxtase, enchi os olhos de lágrimas e só acordei para a realidade com o protetor do motor raspando em uma lombada:



Redshift(*)
(*) http://cas.sdss.org/dr7/pt/proj/basic/universe/redshift.asp

There's something in the air that greets me
Há alguma coisa no ar que me cumprimenta
There's something in the air
Há alguma coisa no ar
I don't know where I belong, or where does it go from here
Eu não sei de onde eu pertenço, ou para onde vou a apartir daqui
See my dreams; they're not like anyone's
Veja meus sonhos; eles não são como os de qualquer um
There's something in your stare that greets me
Há alguma coisa em seu olhar estarrecido que me cumprimenta
There's something in your stare that tells me where I belong
Há alguma coisa em seu estarrecimento que me conta de onde eu pertenço
And where it all goes from here
E para onde tudo vai a partir daqui
I don't know where I belong or where it all goes from here
Eu não sei de onde pertenço, ou para onde tudo vai a partir daqui
See my dreams; they're not like anyone's, anyone's
Veja meus sonhos; eles não são como os de qualquer um
There's something in the air that greets me
Há alguma coisa no ar que me cumprimenta
There's something in the air
Há alguma coisa no ar
I don't know where I went wrong or where does it go from here
Eu não sei onde eu errei, ou para onde ir a partir daqui
See my dreams; they're not like anyone's, anyone's
Veja meus sonhos; eles não são como os de qualquer um, os de qualquer um

É verdade muito séria para mim, meus sonhos não são como nenhum outro.

Da neurose acadêmica, dos meus dias de silêncio, da ciência que amo.

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O grupo de Biologia Comparada:
Para saber mais sobre os trabalhos científicos desenvolvidos pelo grupo de Biologia Comparada leiam neste Blog [click]:
Quando eramos vermes
Sobre status e carreiras científicas no Brasil:
http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v16n2/13.pdf
Sobre críterios Qualis, há uma comunidade no Orkut muito legal chamada "Eu já publiquei em Qualis C":
http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=7945365
Sobre Fator de Impacto e Qualis:
http://www.biblioteca.epm.br/f_impacto.htm%22%3Ehttp://www.biblioteca.epm.br/f_impacto.htm
Sobre
h-index:
Hirsch, JE., 2005. An index to quantify an individual's scientific research output. PNAS 102 (46): 16569–16572. doi:10.1073/pnas.0507655102
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terça-feira, 10 de março de 2009

Discriminados: Epílogo

Após os textos sínteses que escrevi sobre grupos discriminados, dois fenômenos ocorreram: (1) este Blog tomou um novo direcionamento; (2) criei um tipo de juiz permanente para mim e todos os meus amigos (incluo também os leitores assíduos).

No primeiro ponto, fica para mim cada vez mais clara a necessidade de transmitir conhecimento científico contextualizado para nossa realidade. Eu escrevi antes, talvez não seja nada inédito, como os acordes das músicas do Legião Urbana em relação ao The Smiths. Entretanto, as letras em português e os temas voltados para urgências brasileiras fizeram da Legião uma banda símbolo de várias gerações aqui no Brasil.

A necessidade portanto, é para mim da pura e simples carência da divulgação científica em nosso país. Pesquisas, artigos, livros e sites contextualizados com nossa realidade sócio-cultural.

Tenho que conseguir separar um tempo para escrever meu romance, dá para notar como as pessoas gostam de ler sobre seu tempo. Nosso contexto hoje é de ciência, acima de tudo. Imagine viver em um mundo com essas regras... na verdade, vivemos sim.

Já esbocei o personagem principal, ele se chama Olavo. Como em toda a ficção há sempre um pouco de auto-biografia, da mesma forma que Roquentin está para Sartre, Olavo está para mim.

Olavo vive em uma selva brasileira de aço, concreto e asfalto, é um primata ordinário cercado de todas as regras genéticas e epigenéticas. Além dessas forças, abate-se com uma intensidade similar todo um mundo de leis sociais e contingências históricas. Olavo é humano... demasiado humano.

Dessa forma, este Blog está cumprindo seu objetivo. Estou realizando o maior prefácio já feito para um romance, preparando a descrição dos detalhes e paisagens por onde Olavo irá trafegar. Evolução, Etologia Humana, Antropologia, Sociologia, História... tudo estará encaixado para que Olavo trafegue entre as ruas, tão estranho e inusitado como o sociopata Dexter... Admirável e normal mesmo assim.

Bem, é também a maior propaganda de um livro que não foi escrito... rsrsrs!!!

No segundo ponto, é verdade, criei um tipo de consciência que se não afetou a vocês meus leitores, afetou a mim. Seja pela simples cartase, ou mesmo o confronto com meus medos, está aqui alguns dos grupos de pessoas que são discriminados em meu dia-a-dia... AQUI E AGORA.

Por que temos tanta atração por assuntos assim? Por que todos esses grupos de pessoas e até animais fazem parte de nossa curiosidade?

Simples, nós estamos entre eles.

Mulheres, homossexuais, negros, deficientes, obesos, idosos, animais e ateus são nossos parentes, amigos e até ídolos. São diferentes de uma maioria que vive a se comparar entre pequenas distinções e um arquétipo percebido como normal.

Delimitar seu próprio grupo sócio-cultural, sua própria tribo, defendê-la das outras rivais tem um algo xenofóbico e primata. Entretanto, o ódio e a dor impostas por nós a grupos de pessoas e animais discriminados está para além de uma simples comparação com nossos irmãos chimpanzés.

Talvez, a pior de todas as condições de hoje entre humanos seja a pobreza. Você pode ser um homem, branco, heterossexual, magro, jovem, saudável e religioso... mas se for pobre, toda essa sua "sorte" vai por água abaixo.

Claro, as conjugações podem ampliar demais a exclusão de uma pessoa, por exemplo, uma mulher, negra, homossexual, gorda, com alguma deficiência, idosa e ateia parece ser um ocaso. Todavia, se essa mulher for rica, todo esse conjunto poderá ser ignorado.

Então poderíamos dividir o mundo em ricos e pobres. Se suas fragilidades transparecem... és pobre; se suas dores não são notadas e ainda haja muitas pessoas te bajulando, és rica (no sentido estrito do que isso quer dizer... tens muito dinheiro).

Quantos ricos existem no mundo? Segundo a Forbes, eles são apenas 400 entre 6,5 bilhões de pessoas!!! Isso implica dizer que a esmagadora maioria de nós é DISCRIMINADA!!! Claro, diríamos que não é bem assim, então leiam o livro "A História Natural dos Ricos" (Conniff, 2004), ou procurem saber quais os hábitos desses 400 milionários da Forbes. Se você não é um freqüentador de Aspen, ou não vive no Principado de Mônaco... você está abaixo, ponto.


Estranho como vivemos em um mundo alienado e às avessas, na prática a maioria de nós é discriminada e explorada por uma minoria.

Escrevi para minha amiga Lívia no Orkut dia desses, após terminar, ou mesmo me satisfazer das minhas obrigações acadêmicas, tenho planos de montar uma ONG, ou um grupo de organização política ligado aos problemas reais de cidadania, recursos naturais e meio ambiente.

Além de um romance esse blog me trouxe sonhos e planos de ação para o futuro.

Espero que algumas dessas palavras também toquem vocês de alguma forma. Da crítica, do pensar, do simples dar de ombros... Não estou plantando sementes, elas já estão por aí dormentes, esperando apenas sinais para germinação.

Acho que sou um pouco louco e toda vez que penso assim, lembro-me de Vicent Van Gogh. Não por comparação de genialidade, Van Gogh foi muito mais do que eu sou. Entretanto, ele era míope e todas as estrelas em seus quadros são enormes... da mesma forma que eu as enxergo sem óculos. O louco, míope, pobre e discriminado do Van Gogh imprimiu beleza e influenciou vários outros, quem sabem nós poderemos fazer algo semelhante.

Que as sementes creçam e multipliquem-se contra todas as injustas discriminações deste mundo!

quinta-feira, 5 de março de 2009

Discriminados: Ateus


Para início de conversa, leiam as seguintes declarações:Sobre as mulheres
O feminismo não busca direitos iguais para as mulheres. É um movimento político socialista e anti-familiar que encoraja as mulheres a deixar seus maridos, matar suas crianças, praticar bruxaria, destruir o capitalismo e se tornarem lésbicas.” Pat Robertson – pastor pentecostal, advogado e ex-candidato à presidência da República dos Estados Unidos, 1992.

Sei que às mulheres dói ouvir isto, mas quando se casam, estão aceitando a liderança de um homem, seu marido. Cristo é a cabeça do lar e o homem é a cabeça da mulher. Assim são as coisas, ponto final.” Pat Robertson, 11 de Setembro de 1992


As mulheres têm bebês e os homens provêem a sua subsistência. Se isto não lhe agrada, discuta com Deus.” Phyllis Schlafly – executiva e ativista americana contra o feminismo.Sobre os homossexuais
Para onde irão vocês, homossexuais, quando nós vencermos? Não pode haver coexistência pacífica com homossexuais. No final, vocês todos vão curvar os joelhos diante de Jesus Cristo, quer vocês queiram, quer não.” Kevin Tebedo, diretor do “Colorado for Family Values”, 1993.Sobre os negros e a escravidão
O abolicionismo é uma odiosa pestilência infiel.” Bispo Stephen Elliott, da Geórgia, co-autor da carta pastoral do Concílio Geral da Igreja Protestante Anglicana Confederada, 01 de Novembro de 1862.

Não há nada na Bíblia proibindo a escravidão, apenas a organizando. Podemos concluir que ela não é imoral.” Reverendo Alexander Campbell.

É melhor ser escravo no Brasil e salvar sua alma que viver livre na África e perdê-la.” Sermão do Padre Antônio Vieira aos escravosSobre a tolerância religiosa
Tolerar igualmente todas as religiões… é o mesmo que ateísmo.” Papa Leão XIII, “Immortale Dei”.

Selecionei essas frases entre tantas outras que existem em blogs e sites na internet. Eu sou ateu por escolha, não por oposição a uma criatura suprema de amor humano (primata) e que cuida de forma antropomórfica do universo inteiro. Sou assim porque perdi minha fé em afirmações e dogmas metafísicos. Sou um típico cidadão do mundo que possui um pouco de educação e informação suficientes para só aceitar declarações e políticas baseadas em fatos comprovados e hipóteses científicas.

Sei que reconhecer publicamente meu ceticismo traz consigo todo o ódio irracional de pessoas que se expressam como nas declarações acima. Então, antes de continuar quero deixar claro que minha postura não é de combate a uma religião específica, ou mesmo promover ataques a qualquer pessoa religiosa. Eu apenas não consigo acreditar. Sempre que tenho diálogos interessantes com amigos religiosos exponho para eles uma série de minhas dúvidas sobre a possibilidade de vida pós-morte que envolve as propriedades da matéria, conservação de energia, anatomia, fisiologia e comportamento humano e animal comparados. Nunca me respondem a perguntas tão simples como: por que tenho mamas, pelos e dentes iguais a qualquer outro mamífero? Por que sou tão animal(*)?

Claro, a resposta simples é que compartilho homologias com meus ancestrais, sou um primata humano, um produto biológico do processo da evolução dos seres vivos.


Isso não é uma crença, apenas fatos comprovados cientificamente.

Ao invés disso, na maioria das vezes, após o calor da discussão, desde a adolescência, escutei sempre no final uma repreensão, ou ameaça do tipo “você queimará no inferno eternamente”!!!

Gostaria de saber, por quê? Só fiz perguntas e queria apenas respostas para manter a minha fé inabalada.

Algumas pessoas nem tem percepção, nem compreendem o que significa dizer “eterno” (“sem fim”). Ameaçar outra pessoa a “queimar eternamente” é de um sadismo tão profundo, uma intolerância tal que deveria ser punido por lei, tal qual fazemos com quem discrimina pessoas por sexo, cor, ou etnia.


Sem respostas científicas, além da triste "condenação de minha alma", qualquer problema que eu tiver sempre falam: "é castigo e haverá mais ainda!" Quanto amor divino, não é?! Sim, eu já tive problemas de saúde e terei muitos outros. Câncer, doenças cardiovasculares, acidentes entre tantos outros perigos da vida são comuns para TODOS NÓS, ateístas e teístas. Se apenas fé bastasse não investiríamos bilhões em pesquisas para desenvolver novos fármacos e terapias para tratar de nossas dores.

Bem, como um brasileiro típico dos subúrbios, fui batizado na igreja católica, freqüentei algumas igrejas evangélicas, li sobre espiritismo, budismo, tornei-me deísta, panteísta, agnóstico até entender o ponto em que cheguei... eu “perdi minha religião”:<



Legal é saber que eu não estou sozinho! Segundo último censo mundial 2,5% população, ou seja, 162,5 milhões de pessoas se dizem ateístas. Número certo, ou aproximando que representa uma das mais discriminadas minorias humanas, equivalente ao tamanho de toda a população brasileira!




A maioria das pessoas que se identifica como ateísta se encontra em países europeus, dos quais em destaque está a França (com 33%) e a República Tcheca (com 59%). Nos países em desenvolvimento parece ser muito menor a ocorrência de ateus, tendo em vista, por exemplo, que na internet podemos encontrar textos que designam a América Latina como “a reserva espiritual do cristianismo”. Apesar disso, países como China, Coréia do Norte e Cuba possuem uma elevada percentagem de ateus.

Essas 162,5 milhões de pessoas não formam um grupo homogêneo, porque optar pela não existência de deuses (ou qualquer ser metafísico) possui os mais diferentes motivos. Concordo que para descobrir o porquê de uma pessoa optar pelo ateísmo o melhor a fazer é perguntar pessoalmente... ou ler seu Blog!

Além do mais, ateísmo não tem nada haver com atitudes “anti-religiões”, satanismo, ou mesmo falta de patriotismo. Isso mesmo, caros leitores, patriotismo! Segundo o ex-presidente dos Estados Unidos, George Bush (pai), ateus nem deveriam ser considerados cidadãos.

Em países onde estado e religião estão unidos, ateísmo é crime punido com a morte. Por exemplo, isso acontece no Irã, onde uma pessoa pode ser executada publicamente por ser ateísta.
Deixo claro que não é por você ser um teísta que se livrará da discriminação religiosa. Mesmo os cristãos que formam o maior grupo religioso, compreendem apenas cerca de 2,1 bilhões de pessoas. Há ainda 1,2 bilhões de islâmicos, 900 milhões de hindus, 330 milhões de budistas, etc. Ou seja, o mundo não é exclusivo de uma única crença metafísica.

O cristianismo por si só também é subdividido em mais de 3.000 igrejas com interpretações diferentes que entram em conflito umas com as outras. Cada uma delas acredita ter encontrado a verdade, julgando todas as contrárias equivocadas e merecedoras de uma estadia sem fim em meio às chamas do inferno. Apenas para citar um exemplo clássico, católicos e protestantes possuem interpretações, liturgias e rituais muito diferentes. Católicos e protestantes lutaram entre si várias vezes promovendo verdadeiros massacres como na Irlanda em seu Domingo Sangrento (30 de janeiro de 1972).


Acreditar em vida pós-morte, em seres metafísicos e ter experiências espirituais é transcultural. Está presente em todas as culturas humanas. Quando isso ocorre, meus caros leitores já sabem: é genético! Pesquisa após pesquisa sabemos hoje que os lóbulos temporais e parietais de nosso cérebro são as regiões formadas pelas complexas redes neurais responsáveis pelas experiências místicas. Estudaram de cristãos a budistas, reza a meditação, em ressonância magnética todos apresentaram o mesmo padrão de excitação dessas áreas em seus cérebros. É anatômico e fisiológico, genes estão por trás disso e estes, por sua vez, estão sempre sofrendo influência da seleção natural.

É a mesma conjugação de genética e meio social exemplificada de forma clássica na linguagem: todos os humanos estão programados geneticamente para falar, mas a língua que falam é aprendida através da cultura. Segundo sabemos hoje, o mesmo está para a crença em mundos e criaturas metafísicas. É por isso que humanos e deuses caminham juntos desde o Pleistoceno. Não há deuses sem humanos e vice-versa.

De onde veio isso e por quê?

Cientistas perguntaram essas questões e as respostas são quatro:

(1) Toda a função que ajude na melhoria de aptidão nos seres vivos é selecionada. Sabemos hoje que pessoas com fé possuem sistemas imunológicos mais eficientes e tem níveis de endorfinas aumentados em seus cérebros. Em ambientes sem nossa medicina moderna e a biotecnologia dos fármacos, qualquer vantagem corporal (isso inclui a comportamental) que nós tivéssemos seria fixada na população.

(2) Somos mamíferos sociais, vivemos em grupos com organização hierárquica. Nossos irmãos chimpanzés possuem machos e fêmeas alfa. No caso particular dos
Pan troglodytes é o macho que ocupa a função principal, já em P. paniscus é a fêmea. Mesmo que nossos ancestrais sejam uma mistura desses dois grupos, os P. paniscus parecem ser mais chimpanzés do tipo ‘P. troglodytes’ derivados. Dessa forma um ancestral comum tipo ‘P. troglodytes’ parece ser adequado para todas as espécies descendentes (incluindo nós humanos). Isso explicaria porque na esmagadora maioria das culturas pluri e monoteístas a figura mitológica central é masculina. De Zeus a Deus, parecemos representar homens centrais de grande poder, como os chimpanzés e seus machos alfa.

Da mesma forma que um chimpanzé beta não pode olhar na face do macho alfa, nos é proibido olhar a face de deus. Todos os sinais de submissão dos membros sob a liderança do macho alfa são similares a quando vamos ter com nossos deuses. Baixamos nossas cabeças, curvamo-nos, de joelhos, ou mesmo nos atiramos no chão, falamos em tom respeitoso, imploramos pelo seu amor, atenção, proteção, comida e que esteja do nosso lado contra nossos inimigos. Essas são funções do macho alfa em um grupo de chimpanzés. Ter uma hierarquia definida com um macho alfa central é tão forte nos primatas, que a passagem do poder, ou ausência de um macaco alfa, traz caos ao grupo até a escolha definitiva do novo líder.
(3) Uma outra característica emergente ligada à vida primata é que em nossa hierarquia social também inclui coalizões e lideranças ausentes, temporárias ou permanentes. Por exemplo, todos nós elegemos prefeitos, governadores e presidentes que podemos nunca ter contato, mas respeitamos e seguimos sua liderança em sua ausência física.

Sendo assim, criaturas metafísicas onipresentes que assumem o papel de líderes alfa de grupos de centenas, hoje em dia de bilhões de pessoas, são possíveis de existir como o resultado de uma propriedade emergente de nossa capacidade cognitiva.
(4) O cérebro humano é a máquina mais complexa e eficiente de mundos abstratos e ilusões já construída pela evolução. Nunca vemos todos os detalhes em nossa volta, tão pouco todo o espectro da luz. Ponto a ponto focalizado pelos nossos olhos levam determinada quantidade de informações que são interpretadas por nossas redes neurais. Reconstruímos realidades inteiras. Por exemplo, estenda sua mão direita à frente de seus olhos, depois feche um deles de cada vez, observe detalhadamente que você vê com cada olho uma mão em ângulos diferentes, são duas mãos, mas você enxerga apenas uma com os dois olhos abertos. Como é isso?! Abra seus dois olhos e ainda com a mão estendida olhe para um ponto em frente, mas não para mão. Note no canto de sua visão que há duas mãos flutuando, caso você fixe o olhar na sua mão agora... só aparecerá uma! Essa mão é uma terceira resultante da soma de informações de cada um de seus olhos, o cérebro reconstruiu a visão de sua mão.

Há um outro exemplo muito interessante... Imagine-se morto agora. Alguns segundos para você visualizar bem a cena e “tchan-tchan-tchan”: você não conseguiu!!! Quando fazemos essa tentativa, vemos nosso enterro, o caixão, as pessoas presentes... e nós nos vemos em uma perspectiva fora de nosso corpo. Quando somos desafiados a nos imaginar mortos não remontamos a uma perspectiva de visão dentro do caixão, tão pouco conseguimos imaginar o fechar de nossos olhos e o que acontece depois... O motivo? Nosso cérebro só pode imaginar coisas que ele experimentou, ele sempre esteve vivo, nunca conseguirá imaginar não existir... Você traduziria em palavras essa sensação da seguinte forma: “eu não sei como é estar morto, como posso imaginar?” É por isso que quando estamos sonhando, o cérebro sem o funcionamento dos olhos, sem informações eletromagnéticas diretas do ambiente, reconstrói mundos oníricos de puro delírio, onde nós nos vemos, como em uma perspectiva fora do corpo.

A soma dessas quatro respostas levou a proposição até de um novo ramo da neurociência: a NEUROTEOLOGIA EVOLUTIVA.
Nesse ponto vocês podem estar pensando no seguinte: se ter fé em figuras metafísicas é natural, então como explicar o ateísmo?

Ateísmo é uma escolha
a posteriori!!! Finalmente algo completamente cultural aqui neste Blog!!! Não é uma falha cerebral, é o questionamento e informação obtidos da experiência comum e estudos científicos (neurologia, etologia, psicologia, sociologia, antropologia, história e arqueologia). Por exemplo, sabemos hoje que a fé necessária para uma longevidade humana não necessariamente precisa ser em figuras metafísicas, podem ser ideais e causas coletivas. Gandhi inspirou meio bilhão de pessoas na Índia e juntos conseguiram por fim ao colonialismo britânico nesse país. Essa fé na luta por direitos e liberdade se expressa pelos mesmos mecanismos da fé abstrata.

Sabemos hoje que não é necessário adotarmos uma religião para que nossa sociedade comporte-se de forma ética e dentro dos padrões de moralidade cívica. Tanto que os países ocidentais democráticos assumiram uma postura laica, abarcando todas as religiões, ao mesmo tempo em que não assume nenhuma delas como oficial. Salve a República!!! Obrigado a todos nós por ela!!!

Uma revolução científica e biotecnológica já aconteceu em nossas vidas. Embora a maioria das pessoas no ocidente tenha fé em figuras metafísicas, recorre-se sempre à medicina (ciência) na busca da resolução de problemas de saúde. Não há resposta, tão pouco tratamento e medicação para todas as enfermidades infecciosas e genéticas de agora, pior nas que virão. Todavia, livramo-nos de muita, muita dor em apenas dois séculos de ciência como a conhecemos hoje. Realizamos milagres, mesmo que você não admita isso.

O efeito placebo de tomar um medicamento, um comprimido de farinha é clássico hoje. Pessoas se sentem melhor quando tomam medicamentos, mesmo esses não surtindo efeito algum.

Isso é fé nas ciências biológicas e da saúde!!!

Voltemos para o ateísmo. Entendam que caso Jesus voltasse hoje, mesmo andando sobre as nuvens, ele não seria adotado por 100% das pessoas no mundo. Não é uma questão de escolha do povo a ser salva, mas que as religiões não iriam desaparecer mesmo na presença de um evento dessa natureza.

Por outro lado, constatado que há vida sem nosso corpo, que milagres metafísicos são possíveis, isso representaria o fim do ateísmo no mundo inteiro!

Compreenderam a diferença?

Ateus e agnósticos não são pessoas organizadas no combate contra a fé. Claro, intolerância das igrejas deve ser sempre denunciada. Não é justo que queimemos pessoas em praça pública só porque elas fizeram perguntas... e não conseguimos respondê-las.

Giordano Bruno e Galileu Galilei são grandes vultos da humanidade, que foram perseguidos de forma vergonhosa pela igreja católica. Se você pensa que isso passou, pergunte ao romancista britânico Salman Rushdie. Após a publicação de seu romance “Versos Satânicos” (1989), onde o personagem da história dizia não acreditar mais no Islã... Isso foi o suficiente para o então líder do Irã, Aiatolá Ruhollah Khomeini, condenar Rushdie pelo crime de apostasia... Uma condenação à morte. Até os dias de hoje Rushdie vive no anonimato, escondido e com medo de ser assassinado por algum mulçumano.
O ateísmo no mundo ganhou força porque contou com vultos como Carl Sagan, que mesmo em seu leito de morte permaneceu cético quanto à possibilidade de vida pós-morte.
O maior frisson internacional recente foi o lançamento do livro, "Deus - Um Delírio", de Richard Dawkins. Após isso, muitos ateus literalmente saíram do armário, ora por compreenderem melhor o que eram, ora simplesmente porque viram essa coragem em outras pessoas.

Tenho amigos de várias religiões, inclusive amigos ateus. Nunca levei uma defesa de minha postura para sala de aula, respeito todos meus alunos independente de cor, raça, sexo e religião. Meus filhos possuem total liberdade para escolherem sua religião, ou ausência delas, embora a mãe deles os tenha batizado na igreja católica. Eu não fiz uma luta em casa, porque eu também fui batizado... e hoje sou ateu!

Discordo dos resultados da pesquisa de Richard Lynn (2008), na qual os scores QIs são mais altos em ateístas do que teístas. Testes de QI também foram utilizados para discriminar negros, pardos e latinos. Tanto que ficou difícil e deselegante para Lynn explicar o porquê dos scores de QIs dos ateus cubanos serem medianos. Culpar o comunismo como um sistema político que reduz QIs é tão esdrúxulo quanto afirmar o mesmo para as religiões... Há muitos comunistas e cientistas religiosos.

Por tudo isso, continuo assim... ateu. Para mim não é um palavrão, ou uma postura de revolta, foi uma escolha, porque deixei de acreditar em pontos de vista metafísicos. Recentemente, a colunista do jornal britânico The Guardian, Ariane Sherine, após ler uma ofensa que “ateus passariam a eternidade no inferno ardendo em um lago de fogo”, ela teve a idéia de divulgar o ateísmo para combater o preconceito e discriminação. Os ônibus ateus agora estão nas ruas da Inglaterra e Espanha com o apoio da Associação Humanista Britânica e de Richard Dawkins... Espero que um dia tenha a oportunidade de poder entrar em um desses ônibus. Seria um momento meu de irreverência, liberdade e dignidade, enquanto cidadão! Algo como as passeatas realizadas por Steve Biko e Nelson Mandela contra o Apartheid, onde vemos as pessoas que tanto discriminamos no dia-a-dia, sem estereótipos, apenas cidadãos e cidadãs comuns!

Não me mate, não me queime, por seu ateu. Não faça isso com outras pessoas como eu. Ateísmo não é uma postura anti-religião, é questionar e buscar respostas.
Nietzsche costumava ressaltar a cultura grega em suas obras, em especial o Deus Dionísio. De meu lado prefiro a figura mitológica de Prometeu. Esse Titã se atreveu a revelar o segredo do fogo aos humanos. Nesse mito, Prometeu foi castigado por Zeus, porque os humanos conquistaram o poder do conhecimento (o "fogo", a ciência), o qual era exclusivo dos deuses. Acorrentado no cume do Monte Cáucaso, todos os dias um abutre rasga o ventre de Prometeu e come-lhe seu fígado vivo, este se regenera e o ritual de dor perdura através do tempo sem fim.
Temos essa dádiva e, assim como Hércules, à tarefa de desacorrentar Prometeu pela liberdade que ele nos concedeu.
Por fim, encerro este post com a magnífica música da banda In Flames "Man Made God" (o humano fez deus)... é instrumental, porque o título diz tudo: (*) Animal por definição metafísica não possui alma. Discriminamos assim todos os animais, milenarmente tratamos eles como objetos desprovidos de sentimento, dor e qualquer direito à liberdade, ou mesmo à vida... Uma verdadeira vergonha!

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Livros e artigos relacionados
Alper, M., 2007. A parte divina do cérebro: uma interpretação científica de deus e da espiritualidade. Editora Best Seller.

Bourguignon, A., 1990. História natural do Homem - 1. O homem imprevisto. Editora Jorge Zahar.

Damasio, AR., 1996. O erro de Descartes. Companhia das Letras.
Damasio, AR., 2000. O mistério da consciência: do corpo, e da emoção ao conhecimento de si. Companhia das Letras.
Dawkins, R., 2001. O gene egoísta. Editora Itatiaia.
Dawkins, R., 1988. O relojoeiro cego. Editora Edições 70.
Dawkins, R., 2007. Deus - Um delírio. Comanhia das Letras.
de Waal, F., 2007. Eu, primata: por que somos como somos. Companhia das Letras.
Lynn, R., Harvey, J. e Nyborg, H., 2009. Average intelligence predicts atheism rates across 137 nations. Intelligence, 37(1): 11-15.
McGrew, WC., Nishida, T. and Marchant, LF., 1996. Great ape societies. Cambridge University Press.
Sagan, C., 1996. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. Companhia das Letras.
Sagan, C., 1998. Bilhões e bilhões: reflexões sobre vida e morte na virada do milênio. Companhia das Letras.
Stanford, CB., 2004. Como nos tornamos humanos: um estudo da evolução da espécie humana. Editora Campus-BB.
Thomas, K., 1988. O homem e o mundo natural. Companhia das Letras.
Wrangham, R. e Peterson, DE., 1998. O macho demoníaco: as origens da agressividade
Wright, R., 1996. O animal moral - Por que somos como somos: a nova ciência da psicologia evolucionista. 5 ed. Campus.

Sites
A campanha dos ônibus ateus:
The Evolutionary Advantages of Faith:
Agradecimentos:
Aos meus amigos Leon Marrocos, Hércules Florence, Darlan Reis Júnior e Breno Verissimo Gomes pelas discussões e textos que ajudaram à construção deste post.
 
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